terça-feira, 28 de março de 2017

CONTO - SOLTEIRO POR ESCOLHA PRÓPRIA

“Não têm dono os caminhos
Que pela vida pisamos
Vamos andando sozinhos
Com as forças que encontramos.”
-Isolina Alves Santos, em “ Semeei Rosas Ao Vento”, p.103

SOLTEIRO POR ESCOLHA PRÓPRIA

Apresento-me: o meu nome é Gilberto Fraga. Mais conhecido p’lo “professor Gil de Ciências Naturais”. Vivo aqui, nesta casinha, com o meu cão, Piloto. Só os dois, por escolha minha. Um pouco mais acima do que a aldeia, para estarmos mais sossegados, os dois. Gosto de aqui estar, só eu e ele.
O tempo, hoje, está um bocado fresco, e desagradável, por causa da chuva que caíu, na noite passada, e do vento que ainda se sente. Está-se bem ao pé da lareira, que costumo acender, para conforto meu e do Piloto. Quando há bom tempo, costumo ir apanhar lenha miúda para acender o lume. E pinhas secas, que ajudam a preparar um bom fogo. Mas, mesmo com este tempo frio, vejo-me obrigado a sair, todavia: Se não o fizer, quem levará Piloto a dar a sua volta costumeira, de manhã, e à tardinha, afim de fazer as suas necessidades, e exercitar um pouco o seu grande e pesado corpo de cão venerável? E até eu preciso de fazer um mínimo de exercício físico! Já há dez anos que vivemos os dois sozinhos, ele e eu. Adoptei-o, resgatando-o do canil municipal, da cidade onde vivi quase a minha vida toda. Um dia, à porta de um dos supermercados dessa cidade, havia um peditório para os animais. Como estava com vontade de arranjar uma companhia canina, que é uma das melhores que um homem sozinho pode arranjar, informei-me junto dos responsáveis pelo peditório, e assim que os meus afazeres me deixaram umas horitas livres, fui lá, com a minha carrinha. Agradou-me, entre muitos, este companheiro de quatro patas. Na altura, era um jovem pastor alemão, a precisar de dono. Tinha sido encontrado abandonado havia pouco tempo. Demo-nos bem logo à primeira. E temos feito muita e excelente companhia um ao outro.
Fui professor durante vários anos, e quando chegou a altura da reforma, há cinco anos atrás, eu, como era - e ainda sou, e serei - solteiro, incondicionalmente, mudei-me da última cidade onde vivia e onde tinha trabalhado nos últimos tempos, para esta aldeia, onde vivo tranquilo, com este amigo de quatro patas.
De vez em quando, a malta mais jovem, como vocês, que vai sabendo, pelos habitantes daqui, que fui professor, aborda-me, e fica um pouco à conversa comigo. Os jovens são esponjas autênticas, sempre desejosos de aprender, de conhecer mais e mais. Fascinam-nos as inúmeras histórias e as experiências pessoais que tenho para lhes contar e partilhar com eles. Ao princípio, alguns têm receio do Piloto. Mas, no fundo, embora ele intimide um pouco, na primeira visita, , os que vêm com boas intenções, e nos respeitam, tornam-se logo  amigos dele também.
Há mesmo uma pequenita, aqui da aldeia, de seis anitos, que adora cá vir, para brincar com este meu cão, sempre que pode. Da primeira vez, há cerca de um ano atrás, ela tinha receio, mas eu ajudei-a a aproximar-se dele, ainda me lembro:
- Não tenhas medo do Piloto, querida! – Disse-lhe eu.- Ele não morde nem os meninos, nem as meninas, como tu, que simpatizam com ele! Anda fazer-lhe festas!
A miúda veio, ainda a olhar para mim, para certificar-se que podia confiar. Chegou-se ao pé do Piloto, comigo, e fez-lhe uma tímida festa na cabeça, dizendo:
- Mimi gosta de ti, Piloto!
Depois, vendo que ele era confiável, continuou durante um bocado, e foi dizendo, olhando-o nos olhos:
-Mimi gosta de ti! Muito! Cão lindo! Mimi amiga do Piloto, sim?
Até dava gosto de ver a cara do Piloto a olhar para ela e depois para mim, de boca aberta, como se estivesse a sorrir, a língua de fora, a semi-cerrar os olhos, e a abanar o rabo! A este cão, só lhe falta a fala! E a partir desse dia, a Mimi passou a vir sempre que pode. Traz sempre com ela um miminho para ele e põe-se a abraçá-lo, a fazer-lhe festas, a dar-lhe beijinhos, a falar com ele...  e este maganão adora a garota! O que é engraçado, é que ele percebe tudo o que ela diz! Até dá gosto ver os dois juntos! Já lhes tirei fotografias, que consegui emoldurar. Ora vejam! Cá estão, sobre este aparador! Não estão o máximo?
Se gosto de jovens? Claro que sim! Convivi uma vida inteira com jovens, tantas turmas de rapaziada! Passei por várias escolas, em todo o País! Deixei recordações, e trouxe comigo recordações também! Mas adoro visitas dos mais pequenitos, como a Mimi, e outras crianças daqui, que sempre que me encontram, com o Piloto, vêm a correr ter connosco! Chamam-me Professor Gil! Fui eu que lhes disse para me tratarem assim, ou, se quisessem, por Sr. Gil! Mas acho que eles preferem ver-me mesmo como professor! Inclusive, quando têm algumas dificuldades com as tarefas escolares, vêm ter comigo, e pedem-me ajuda. E eu ajudo sempre a esclarecer as dúvidas da garotada. Formam uma turminha, todas as tardes, durante a semana, nos períodos escolares. Estão para aqui comigo, uma horita ou duas, depois vão para casa, quando eu vou dar a minha volta com o meu cão. Acompanho-os a casa, a todos, e conversamos sempre, pelo caminho. Os pais já me quiseram remunerar como explicador, mas eu não permito tal! Já lhes fiz entender que faço isso por amizade aos garotos e garotas, como entretenga, e por gosto próprio. Então, passaram a exigir que eu aceitasse dádivas de coisas tais como uns chouriços caseiros, ovos, algum peixe apanhado na ribeira aqui perto, pão feito por eles, cozido em forno de lenha, ou outras coisas do género... tudo uma delícia! E eu, para não lhes ofender a susceptibilidade, aceito. Entretenho-me, muita vez, com as lições que dou aos miúdos, mas também me dedico à bricolagem. E eles também aprendem isso, e gostam de ajudar a montar engenhocas úteis em casa, como muitas das coisas que vocês aqui vêem! E assim, quando precisam, já sabem fazer o mesmo em casa de cada um deles...
Já fui muito louco, quando jovem, e por isso, compreendo a juventude. Já cometi muitos erros e loucuras, tal como muitos deles. Mas é sempre bom ter com quem partilhar experiências de vida e conhecimentos. Eles adoram-me, e respeitam-me. Admiram o companheirismo que existe entre mim e o meu cão. Já fomos os dois um pouco solitários, mas sempre muito unidos. Damo-nos ambos muito bem. Ele sabe quando eu não estou nos meus melhores dias. Dá-me o apoio silencioso que só no seu olhar e no seu comportamento posso advertir. E eu compreendo a sua alma límpida  e simples de cão idoso, que só precisa da minha companhia, do meu carinho e dos meus cuidados, para ser feliz.
Porque é que vivo sozinho com o Piloto? Porque decidi ficar solteiro. Fui um homem apaixonado, que foi duramente desenganado por mais do que uma mulher. A primeira chamava-se Lara, e  era estonteante. Morena, como uma cigana, longa trança negra. Olhos negros de expressão penetrante. Baixinha, magrinha. Hippie! Mas tinha um encanto muito próprio. Apaixonei-me logo, como um louco, por ela. Fui avisado para ter cuidado... Mas deixei-me levar, cego pela paixão. Não quis escutar conselhos de ninguém! Eu  tinha dezoito anos, e ela era mais velha do que eu cerca de oito... Para aquela diaba, fui um breve capricho, nada mais! Essa minha loucura durou um Verão. Eu vivia perto de uma praia. Passei os meses de  Julho e Agosto a louquejar com ela, escondidos, muitas vezes, debaixo da quilha virada de algum barco, rebolando na areia, à noite, e amando-nos como doidos. Corríamos pela praia, de mãos dadas, mas sempre à noite. Ela só vinha à noite ter comigo. Havia um velho barracão, abandonado, numa zona da praia que era pouco frequentada. Ela ia lá ter . Eu esperava ali por ela... Quase nem ia a casa... Os meus pais andavam preocupados comigo. Eu, cego, nem ligava! Quantas noites não voltei eu, mais tarde, depois de ela me ter deixado, a entrar nesse barracão, e não fiquei, ali, a relembrar essa paixão assolapada desse Verão! Sabem aquela canção do José Cid: “A Cabana Junto à Praia”? Pois a minha vida, nessa altura, era parecida com o que diz uma parte da canção. Cheguei a levar a minha guitarra, e tocava  velhas canções que eu conhecia,  e músicas que eu próprio compunha, lembrando-me dessa bandida! Esquecia de vos contar que ainda toco guitarra, e até já ensinei alguns putos daqui a tocar algumas coisitas! Eles também gostam disso à brava! Mas, voltando ao que vos estava a contar: A Lara - Essa diaba! Com ela aprendi o que é ter intimidade com mulheres. Com ela tive a minha primeira vez! Foi o suficiente para fazer estragos na minha vida! Um dia, descobri que ela me enganava, que tinha outro amor: um amante mais ou menos da mesma idade do que ela. Eu nunca o tinha visto, nunca vira os dois juntos, sequer, nem antes de eu andar metido com ela! Ele deve ter estado fora, e  voltou a ter com ela, ou a buscá-la, na única vez que  eu os vi juntos! Ela foi embora, no fim do Verão, com esse sujeito, um hippie, também, de guedelhas compridas e deslavadas, e ar de vagabundo. Descobri então que faziam par, que só estavam de passagem pela cidade. Um louco amor estival! Nada mais! Uma brincadeira, para aquela patifa! Fiquei cego de dôr e de raiva, contra ela, e sobretudo, contra mim mesmo, por me ter deixado enganar assim! Passado algum tempo, cerca de quatro anos, arranjei outra namorada... Chamava-se Celeste - que infelizmente, rimou, para mim, com peste! -  loira, como um sol tropical! Olhos verdes fatais: Uma colega de turma, já no final dos meus estudos universitários.... Quando eu julgava que podíamos ser felizes ambos, e que podia voltar a acreditar no amor, ela foi embora com aquele que se dizia, e que eu julgava mesmo ser, na época, o meu melhor amigo: João Sarmindes!... Ah! Celeste! Que eu julgava, a princípio, tão celestial como um anjo! Era linda, sorridente, e mimosa, como se fosse um anjo mesmo! Mas “as aparências iludem”, como diz o velho rifão popular! E ela enganou-me bem! Parecia que não via nada mais, ninguém mais do que eu! Íamos juntos para toda a parte! Levei-a, inclusive a conhecer os meus pais! Eles adoravam-na! Parecia uma rapariga tão acertadinha! Estávamos quase a voltar para Lisboa, para iniciar outro ano lectivo, quando ela me pregou a pior partida que me podiam, alguma vez, pregar na vida: Eu, ela e o meu amigo João, tínhamos combinado abalar todos três juntos para Lisboa, para a Universidade. Mas ela e ele deixaram-me para trás, nas vésperas da data combinada. Não cumpriram com o combinado. Perdi um amigo! E desenganei-me ainda mais do que da primeira vez!  Cheguei a cortar os pulsos, mas fui salvo a tempo, por uma alma caridosa,  que me socorreu e alertou os meus familiares. A minha mãe ia morrendo de desgosto! Escusado será dizer que perdi esse ano lectivo, entre o problema de ter cortado os pulsos, que teve de ser tratado de urgência e que foi um caso muito delicado, fisicamente falando, e a depressão com que fiquei, também! E essa quase que me mata também! Tive de esperar, para me voltar a matricular, no ano seguinte, na mesma Faculdade, e que me concedessem o re-ingresso. Quando consegui recuperar disso tudo, lá fui, sozinho, para Lisboa, novamente! Eles, de vez em quando, cruzavam comigo, com ar comprometido, mas eu evitava-os ao máximo! Tentaram vir justificar-se, mas como eu tinha o pavio curto, e estava ainda dorido moralmente, de toda essa história, não quis saber mais deles, e mandei-os nunca mais virem ter comigo, nem me falarem sequer! Então, afastaram-se de mim para sempre!  Foi o melhor que fizeram! Eu estava capaz de dar cabo deles se voltassem a meter-se comigo! Daria cabo de ambos! Aí, então, é que eu nunca mais quis saber de raparigas! Algumas ainda me rondaram e tentaram... Mas eu abdiquei! Preferi parecer um urso solitário, do arriscar-me a sofrer mais, por quem não merecia o meu sofrimento! Solteiro, sozinho, tenho vivido razoavelmente: aqui estou ainda, enquanto Deus quiser! Se o meu cão me sobreviver, espero que possa, antes disso, entregá-lo a alguma alma amiga, que cuide dos seus últimos dias... Caso contrário, se eu lhe sobreviver a ele, viverei o que me resta de vida como eu puder.
 Mulheres, meus amigos? Dessas? Nunca mais! Quando me sentia com necessidade física de estar com uma mulher, cheguei a ir a casas de prostitutas! Chegava lá, era atendido decentemente, sempre por alguma garina engraçada, mulheres que sabiam o que tinham a fazer... Não se punham com merdas!  Eram pagas, para aquela hora, e pronto! E tudo sem compromisso! Fora disso, o que penso das mulheres? Pois bem: Há mulheres maravilhosas, sim, verdadeiros exemplos de bondade, de abnegação, de coragem, ou de empreendedorismo... Minha mãe foi uma delas, um santo exemplo, que guardo em meu coração! Algumas mulheres podem ser verdadeiras e grandes amigas nossas! Não lhes retiro os seus méritos!  Havia, até há pouco tempo atrás, uma senhora viúva, aqui na aldeia, que se tornou mesmo uma verdadeira amiga minha, de coração! Uma amizade sem maldade, sem segundas intenções! Como se fosse minha irmã! Cá está a foto dela! Chamava-se Hermínia Vasco! Houve quem lhe tentasse deitar fama de ser minha amante! Mas nunca lhe toquei com um dedo, sequer! Sempre houve entre nós um grande respeito! Um dia, um dos vizinhos, aqui da aldeia, veio ter comigo, e perguntou-me se realmente eu tinha alguma coisa com ela! Conversámos e fiz-lhe ver a realidade. Ele alertou-me que ela estava a ser difamada por minha causa. Eu contei-lhe a verdade. E tudo ficou esclarecido a partir daí: pediram-nos desculpa a ambos, e nem mais se falou no assunto. Amigos, mas amigos fraternos! Se ambos tivéssemos querido, poderíamos ter sido amantes, sim senhor! Poderíamos ter vivido juntos, também, que não teria tido mal nenhum, pois então? Ninguém teria tido nada a ver com isso, e não estaríamos a prejudicar ninguém, sendo ambos sem compromisso! Conversávamos muito. Ela ajudava-me imenso, limpando o que podia da minha casa, trazendo-me, certos dias, comida, quando me sabia doente, metido à força na cama. Eu também a ajudava a ela no que me era possível! Ela até passeava o Piloto, quando eu não podia! Piloto gostava dela a valer! Mas a morte levou-me essa boa amiga, há meses atrás... Um ataque cardíaco fulminante, e fiquei sem a Hermínia! Fiquei bastante desgostoso, algum tempo, e o Piloto, coitado, gemia de meter dó! Parecia que chorava! Quando fui ao funeral dela, o Piloto foi também. Ficou gemendo, deitado ao lado da campa, um monte de tempo, até que lá consegui que voltasse para casa comigo. Esteve sem comer um par de dias. Só bebia água. Até eu perdi o apetite, durante um tempo, mas reagi! Por ele e por mim, e pela memória dessa amiga, que não havia de gostar de me ver assim! Querida Hermínia! Deus a tenha em Seu Eterno Descanso! Que a sua alma generosa e humilde bem o merece! Nunca a esquecerei! Grande mulher, valorosa e leal amiga! Mas aquelas duas, que me traíram e abandonaram, na juventude, para fugirem com outros... dessas, nem ver mais nenhuma é bom! Já vêem, não tenho tido sorte com mulheres! Ah! Mulheres! Como, sendo jovem, fui tolo! Apanhei bebedeiras de cair inerte, por causa delas! Para quê? Ia dando cabo da minha saúde, da minha vida! Até que, um dia, compreendi que o melhor, para mim, desenganado como já estava, era prosseguir sozinho. Entretanto, a vida foi passando, e tive muita gente a quem dar atenção, na minha profissão. Quantas gerações já passaram pela minha vida! Guardo belas recordações de bons  e boas colegas de profissão, de gente capaz e inteligente, de corações limpos. E os outros, pú-los para trás das costas... Também guardo gratas recordações de excelentes alunos e alunas, malta jovem com garra e inteligência, mas também com genuína amizade por mim! Alguns deles, já adultos, sabem agora onde vivo, e já me têm vindo visitar! É grato receber visitas de quem nos guardou no coração, saber que fomos bom exemplo para alguém. Que essas pessoas nos estimam e nos têm amizade. É o lado bom da minha profissão.
 Dizem por aí que sou solitário... Deixem-nos falar! Sou mais feliz assim! O Piloto é um companheiro fiel!  E, ao menos, ele, não finge gostar de mim!
Obrigada pela vossa visita, amigos! Podem voltar quando quiserem! Se trouxerem um miminho para o Piloto, tanto melhor! Para mim, as vossas visitas bastam-me, para ter algumas horas mais animadas! Sobretudo, se trouxerem as vossas guitarras, para treinarmos  e tocarmos juntos alguma coisita!
Vá, Piloto! Anda daí! Vamos! Já não chove, e é de aproveitar agora! Olha, o arco-íris a brilhar, em todo o seu esplendor! Deixem-me lá tirar uma foto e guardar mais essa bela lembrança! Arco-íris! Eterna aliança de Deus com o Seu povo! Sabiam? Eu também sou do povo de Deus! Creio firmemente n’Ele! Deus não se esqueceu de mim! Nem eu d’Ele! Obrigada, Senhor, por cuidares de mim e do Piloto!


FIM


Nely, Março 2017

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