sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Conto: "Em Busca Da Felicidade"

“Conquistar a sua alegria vale mais do que abandonar-se à sua tristeza.” – André Gide

EM BUSCA DA FELICIDADE

-Então, está combinado! Espero por ti, no snack-bar... Até já!
-Até já! Não demoro!
Lívia pousou o auscultador do telefone, pegou na mala  que deixara sobre o banco ao lado da mesinha onde o telefone estava, pondo-a a tiracolo, e apanhando as chaves de casa de cima dessa mesma mesinha, abriu a porta e saíu para a rua, voltando a fechar a porta à chave.
Acabara de falar com Paulo, um amigo de longa data, e ia ao seu encontro, nessa tarde soalheira. Estava farta de ficar só, em casa, enquanto o marido saía sem ela,  sempre que lhe apetecia, e sem a avisar de onde ia, nem de quando voltava. Essa história de ficar ali, como se fizesse parte da mobília, tinha de acabar. Estava farta de sofrer! Vinte anos daquilo...era demasiado! Estava determinada em modificar a sua vida, daquela tarde em diante.
Maquilhada ligeiramente, coisa que há muito não fazia, com o cabelo loiro comprido penteado de forma mais cuidada, e mais sofisticada, parecia mais jovem do que os seus quarenta anos. Rebuscando no seu guarda-roupa, havia encontrado, momentos antes, um belo vestido que comprara algum tempo atrás, e que ainda não tivera  ocasião, sequer, de estrear. Era um belo vestido de meia estação, de tecido estampado, de várias cores, e que lhe caía ainda como uma luva, conforme acabara de verificar, e, dentro dele, até se sentia, agora, renovar. Não fazia frio, e isso era bom. Apenas um casaquinho de malha ligeiro, por cima do vestido novo, bastava. Em passadas apressadas, ligeiras, foi ao encontro de Paulo. Depressa o viu, junto à montra do snack-bar, a duas ruas de distância de casa.
Paulo ergueu-se, para a cumprimentar com um beijo no rosto. Telefonara-lhe momentos antes, pois sabia que Lívia, nos últimos tempos, quase não saía de casa, e que passava o tempo quase todo sozinha.
- Então, querida? Como estás?- Perguntou ele, olhando-a admirativamente.
- Agora, estou começando a ficar bem! Graças a ter falado contigo!
- Que pensas fazer da tua vida?- Perguntou Paulo, sempre a sorrir. Era um homem  da mesma idade de Lívia, com alguns cabelos brancos semeados por entre a cabeleira negra, mas de rosto ainda pouco marcado. Não se poderia considerar Paulo como um homem belo, mas tão pouco pareceria feio.  Era apenas um homem  como qualquer outro, que, apesar da sua profissão de advogado, não gostava de dar nas vistas, e se vestia e arranjava de modo casual e discreto, sempre que não se encontrava a trabalhar.
- Vou pedir o divórcio! Fartei-me, como te disse, há pouco! Ele, esta noite, nem dormiu em casa, e ainda nem sequer lá voltou... – Disse Lívia decidida.
- Isso pode ser considerado, em tribunal, como abandono do lar...
-Sei disso! E é em coisinhas dessas que me vou basear! Preciso da tua ajuda!
-Estou aqui, amiga! Terás toda a minha ajuda! Podes contar comigo, sempre, e desde já!  Tomas alguma coisa?
- Um chá de tília! Preciso de acalmar os nervos!
- Boa escolha! Depois, que me dizes a um cinema? Um filme de comédia recentemente estreado nos cinemas?
-Aceito! Preciso de divertir-me!
-Exactamente!  
A conversa deles prosseguiu, com pormenores da traição em que Renato, o marido de Lívia, a havia magoado, sem que ela lhe fornecesse a razão para isso. Lívia sempre lhe fora fiel, mas ele tinha, desde o ínicio do casamento, atitudes egoístas, e não ligava já nada à esposa. Engenheiro agrónomo, sempre e supostamente muito ocupado, já nem compartilhava os tempos livres com ela. Quase nem se falavam. Não a convidava sequer para sair a tomar um café.
Lívia sentira-se, pouco a pouco, desprezada, posta para trás. Sentira-se como uma sombra de si mesma. Como um objecto mais, entre outros, dentro das paredes da sua própria casa, que herdara dos pais. Estudara pouco, não tendo chegado a avançar mais do que os estudos de escola secundária. Não tinha licenciatura alguma.  Sabia fazer muitas coisas, sendo uma mulher de inteligência média, porém bastante habilidosa. Todavia, era apenas uma dona de casa, tal como muitas. Renato impusera que ficasse em casa, com o argumento de que bastava ser ele a trabalhar. Não tinham filhos. Descobrira, alguns anos antes, problemas físicos que a impediam de engravidar, e que não tinham possiblidade de tratamento.  A sua vida actual era por isso, naquele momento, e desde algum tempo antes, vazia. Ela e Paulo eram amigos desde os tempos de escola primária, e Paulo, ao contrário dela, havia prosseguido os seus estudos... Propôs-lhe ser ele a tratar do divórcio dela.  Lívia aceitou de imediato.
-Em primeiro lugar, vamos inventariar os bens que ambos possuem, e ver o que pode ser-lhe entregue a ele, ou se a atitude dele persistir, perde inclusive o direito a eles...- disse-lhe Paulo, entrando logo em pormenores práticos para a resolução rápida desse assunto.
- Tu, como especialista desses assuntos é que o poderás dizer... – corroborou Lívia. Estava desejosa de ver esse assunto resolvido, a sua vida mudada.
- Se ele não tiver voltado, até amanhã de manhã, mudamos a fechadura da porta da tua casa. Ou, até mesmo, se quiseres, já hoje! E pões-lhe logo a mala com as roupas à porta. Porque o comportamento dele não merece outra coisa. Não o deixes entrar mais ali.
-Certo! E se ele quiser falar?
 - Não caias nessa! Há quantos anos casaste com ele?
- Há vinte!
 - E há quantos é que ele não te liga nenhuma?
- Já lá vão bem uns sete...
-E tu deixaste arrastar o assunto tanto tempo? Ele assim julgou que podia continuar, mulher! Por isso chegou a esse ponto!
- Realmente, a culpa também é minha, por não me ter imposto mais cedo, e ter tido medo de represálias...
- Ele batia-te?
- Não, mas dizia coisas que magoavam! E sempre fiquei com medo de que o fizesse!
- Violência psicológica! Que bem!- Resmungou Paulo, revoltado. Para ele, embora solteiro, uma mulher era tão digna de carinho, atenção e respeito como um homem. E todo aquele que praticasse algum tipo de violência era digno do seu desprezo.
A conversa continuou por algum tempo, até chegar a hora de assistirem ao filme que haviam combinado ir ver, no cinema ali perto. Uma comédia interessante: “ Um Vagabundo Na Alta Roda” . Riram bastante, enquanto assistiam a peripécias caricatas, e partilhavam um pacote enorme de pipocas. Lívia sentiu-se como se voltasse a ter vinte anos, durante esse lapso de tempo. O seu bom humor regressara. Paulo levou-a de regresso a casa. Verificaram que, realmente, Renato não havia regressado. Paulo foi então a uma drogaria, onde podia comprar uma fechadura, para trocar de imediato a da porta da casa de Lívia. Ela, entretanto, ficou a juntar as roupas e objectos pessoais do marido, metendo tudo em alguns sacos, e juntando estes ao pé da porta de casa, na entrada. Paulo regressou, com ferramentas e uma fechadura nova, com a qual, habilmente, substituiu, em pouco tempo, a anterior.
-Assunto resolvido, menina! Agora, se não te importas, vamos deixar isso tudo, e vais jantar comigo, aqui perto!
- Se o gajo voltar, não irá arrombar a porta?
- Tens razão! É bem capaz... Mas não vale a pena estar com receio disso! Tens de ser corajosa e enfrentá-lo! Apanhá-lo de surpresa! Deixas já tudo aqui, encostado à porta. Só lho entregas, quando e se cá estiveres. Senão, ele vai ter de esperar que marques com ele data e hora que a ti te convenha, para tal! Ele assim já nem entra! E vou telefonar já a quem de direito, para arranjar maneira de não o deixarem entrar, e que nem te chateie!Não vai ter hipótese!
-Como assim?
-Amanhã, logo cedo, vais comigo tratar de pedir uma providência cautelar. Ele, assim, será impedido de voltar sequer a aproximar-se de ti! E terá, por força disso, de manter alguma distância obrigatória!
-Boa! És um ás! – respondeu Lívia, a rir.
-Obrigado! Obrigado! – Respondeu Paulo, fazendo uma vénia cómica, com uma mímica divertida. Essa era uma faceta que Lívia sempre admirara em Paulo: Ele conseguia divertir quem com ele estivesse, com o seu jeito brincalhão.
Jantaram alegremente, como se não tivessem passado tantos anos, desde que eram companheiros de estudo e brincadeiras. Lívia sentia-se renovar, rejuvenescer, voltar a ser ela mesma. Paulo elogiou-a:
-Tu, hoje, já me pareces de novo a Lívia que sempre conheci! Graças a Deus que estás a recuperar a tua boa disposição, assim como esse teu olhar alegre e esse belo sorriso que sempre apreciei em ti!
- Tu és a causa dessa recuperação! Sem a tua amizade, a tua ajuda, ainda estaria em casa, possivelmente, a morrer de tédio, e a envelhecer moral e espiritualmente...
- Reconheço que te dei uma mãozinha! Mas a tua vontade de sacudir o marasmo que te aprisionava tem a maior importância neste caso! Se não tivesses essa vontade, não tivesses tomado consciência de que a tua situação era reversível, não estaríamos ambos, aqui e agora, a divertir-nos e a fazer com que pareça que voltámos aos bons velhos tempos! E devo dizer que o espelho, em casa, deu uma ajuda valente na tua mudança de visual! Ultimamente, quando te via, tinhas um aspecto triste, monótona, abatida. Agora, estás linda! Os teus olhos readquiriram brilho, o teu riso é solto, como antigamente! Bravo! A minha jovem amiga Lívia ressurgiu de dentro de ti! Fico feliz por te ver assim!
Passou uma semana. Durante esse lapso de tempo, a vida de Lívia deu uma grande volta: Não só devolveu ao marido os seus pertences pessoais, como conseguiu livrar-se dele de vez. Renato sabia que estava em falta, para com ela. Por isso, não complicou a situação e aceitou levar o que lhe pertencia, de uma vez, abandonar definitivamente aquela casa. E como também decidira já, por si próprio, ir embora e juntar-se com a mulher com quem se amantizara já havia alguns anos, não perdeu tempo a discutir com Lívia. Interiormente, ficou um tanto surpreendido com a nova atitude dela, e com a sua decisão de introduzir, ela própria, mudanças na sua vida.  Admirou silenciosamente o novo visual da sua ex-mulher, e pareceu-lhe inclusivamente mais nova. Pensou que era extraordinária essa mudança, de um dia para o outro. Mas não se importou muito com isso. Há muito que já não a amava. Embora tivesse vivido com ela, partilhado a casa dela durante vinte anos, há muito que a sua relação arrefecera, se degradara, desde que ele havia encontrado Natália, e se havia apaixonado por ela. Compreendera, nessa altura, que o seu casamento com Lívia havia sido um erro. E agora, sentia um peso tirado de cima, ao ir embora, levando tudo o que lhe havia entregado Lívia. Não carecia de bens materiais nenhuns, uma vez que a casa de Natália se havia, aos poucos, tornado mais e mais o seu novo e verdadeiro lar. Sentia-se bem lá. E Natália ia dar-lhe em breve um filho, coisa que Lívia não pudera fazer, infelizmente, e que o atraía ainda mais para a sua amante, quinze anos mais nova do que ele.
Entretanto, os papéis para o divórcio amigável haviam sido despachados prestamente, com a ajuda pronta e activa de Paulo. Seria muito rápido assim. Lívia encontrou a possibilidade de frequentar um curso, que a ajudaria a desenvolver em breve um pequeno e rentável negócio pessoal. Tratou também de renovar um pouco o seu guarda-roupa, de modo criterioso, e moderado. Ela sabia como fazê-lo, sem para isso gastar muito. Cuidou um pouco mais do seu aspecto pessoal, indo a uma cabeleireira, e fazendo uma permanente, com um corte moderno, o que lhe dava um ar mais jovem.
Encontrava-se agora com Paulo todos os dias. Ele aplaudia toda essa renovação e mudança. Almoçavam ou jantavam juntos, consoante a sua mútua disponibilidade. E riam muito, divertiam-se.
Numa certa noite, um sábado, depois de sairem a ver outro filme no cinema, desta vez, romântico, Paulo reacompanhou-a a casa, como já vinha sendo costume. Entrou para tomar algo com Lívia, após o convite que ela própria lhe fez. O clima entre eles estava cada vez mais intimista. A certo momento, Paulo ergueu-se do sofá e abraçou-a, apertando-a contra si. Não foram precisas palavras. Um olhar trocado entre ambos falou por eles. Um beijou os uniu, por alguns momentos.  Depois, Paulo saíu, prometendo voltar no dia seguinte.
Lígia dormiu maravilhosamente, nessa noite, como havia muito tempo que não o conseguia fazer. E no dia seguinte, resolveu também começar a modificar o ambiente da sua casa. Livrou-se de alguns objectos que já não queria. Paulo ajudou-a a tirar de casa trastes e sacos de coisas de que ela pretendia desfazer-se. Na segunda-feira seguinte, comprou tintas para dar novas cores a algum do mobiliário, e meteu mãos à obra, como mulher activa e dinâmica que sempre fora, afinal. Paulo foi dar com ela,  à hora do almoço, com um lenço tapando o cabelo, uma bata velha vestida e uns jeans usados. Ela estava em plena actividade de renovação do ambiente,  de pincéis em riste, várias latas de tinta ao redor, e móveis  pintados de fresco, cujo roçar ele teve de evitar, para não sujar nem estragar o seu fato de trabalho.
Fazendo uma pausa, e vendo que não podia avançar mais com as pinturas naquele momento,  Lívia resolveu parar um pouco com a sua frenética actividade. Queria dar toda a sua atenção a Paulo, que bem a merecia. E queria ela própria respirar e descansar um pouco.
-Vejo que a mudança inclui o que te rodeia! Bravo! Estou a gostar do que vejo, querida!
-Ora ainda bem que gostas, Paulinho! Até porque esta sou eu, a verdadeira Lívia, dinâmica e activa, que sempre conheceste! Estou de regresso!
-Com muitos aplausos da minha parte!
- Mas agora, uma pausazinha vem a calhar, para estar um pouco contigo!
-Claro! Vamos almoçar fora, se não te importas...
- Yuuupiii! Deixa-me só mudar de roupa e escovar o cabelo!
-Ok!
 Momentos depois, saíram ambos para ir, no carro de Paulo, ao outro extremo da cidade de Olhão, dirigindo-se a uma marisqueira. Almoçaram com muito apetite, conversando e rindo. Ele tomou-lhe as mãos por cima da mesa, segurando-as de modo carinhoso.
-Adoro-te, sabias?- disse ele, olhando-a com muita ternura.
-Eu também a ti!- respondeu ela, emocionada, a sorrir.
- Acho que a nossa amizade está a transformar-se em amor, ainda que eu não estivesse à espera disso!
-Concordo contigo!
-E estás de acordo em que as coisas evoluam para uma relação amorosa entre nós?
-Sim! Sinto-me bem contigo, e com a volta que a minha vida está a dar, com a mudança que está a haver na nossa lidação! Embora eu goste muito de ti desde sempre, como amigo, e dê graças a Deus por esta maravilhosa amizade, fico feliz por agora nos tornarmos mais do que isso!
- Acho que vou abdicar do meu celibato por ti! Deixas-me ser o teu novo amor, Lívia?
-Claro que deixo!
- Nunca foste a minha casa, depois que casaste. Queres ir lá comigo, agora? Eu também, ainda moro no mesmo sítio!
-Boa! Assim, não voltamos ainda para a minha, nem respiramos aquele cheiro de tintas, tão intenso! E assim, também, as paredes e os móveis que pintei terão tempo para secar como deve ser, antes que eu prossiga com todas as modificações que pretendo fazer...
-Se quiseres, jantamos juntos também. Tenho a tarde livre, e podemos comprar algo, levar para minha casa e cozinhar juntos!
- Belíssima ideia!
-E se quiseres, ficas comigo esta noite... ou não queres?
Um olhar entre ambos revelou que as vontades eram idênticas. Lívia falou:
- Estou, desde há muito, a precisar de mimos masculinos e de carícias! Já percebi que te estás a candidatar a ser quem mos vai proporcionar... E aceito a proposta!
- Eu também estou desejoso dos teus mimos e carícias, amor! Há tanto tempo que poderíamos ter-nos entregado um ao outro... e não o fizemos... mas acho que ainda estamos a tempo...
- O que não tem remédio remediado está! -Respondeu Lívia animadamente. - Agora, vamos viver o presente! Estou aqui contigo e ambos queremos viver este amor! Meu querido Paulo! Adoro-te e vou dar-te a prova disso a partir de agora!
Pouco depois, saíram da marisqueira de mãos dadas, rumando ao carro de Paulo, onde trocaram beijos apaixonados, antes de que ele o pusesse em marcha. Haviam ambos encontrado a felicidade, um com o outro, e iam vivê-la e desfrutá-la juntos.

FIM

Nely, 
Dezembro de 2017

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Conto : O Amuleto

4º Conto da colecção "TRANSCENDÊNCIAS"

4

O  Amuleto

Gilberto chamou a neta, Juliana, para chegar-lhe perto, naquele momento, em que sentia quase chegar o fim. Ela era a sua preferida, entre todos os seus familiares. Ele estava deitado na sua cama, recostado nas almofadas.
- Que me queres, avô?- Perguntou a jovem, ansiosa por ajudar o seu avô, a quem queria muito e o qual ela sabia que não duraria muito mais.
- Minha querida: abre esta gaveta, aqui, a de cima, da cabeceira – disse o idoso, apontando para a gaveta em questão.
- Vês uma caixinha preta, aí no fundo?- Perguntou, olhando para Juliana, que procurava, no lugar que ele lhe apontava, soerguido na cama.
- Avô, não te esforces! Já  a encontrei… ou não será esta? - Disse a jovem, mostrando o seu achado.
- Essa mesma. Dá-ma cá, por favor!
 Abrindo devagar a caixinha que Juliana lhe acabava de meter entre as mãos, Gilberto disse:
- Quero que fiques com esta jóia, e gostaria que a usasses… Promete-me!
Em suas mãos, magras e ossudas, sustinha, naquele momento, um fio de prata, do qual pendia, presa por uma fina e pequenina argolinha, uma reluzente estrela prateada, de seis pontas, simples, sem pedraria alguma, mas muito linda, não medindo mais do que dois centímetros de diâmetro, de uma ponta a outra. A estrela era apenas constituída por finas hastes cujas extremidades tocavam umas nas outras, mas no meio, só espaços  vazios, não tinha nada mais… Juliana lembrou-se então de que já havia visto algumas parecidas, nas montras das ourivesarias, algumas das quais possuíam um aro fino de prata em volta. Mas esta não possuía o referido aro.
 - Avô! Bem sabes que não tenho por hábito usar jóias! Porque me pedes para usar isto? - Perguntou ela, no seu costumeiro modo franco, espontâneo.
- Juliana, esta jóia tem passado de geração em geração, está abençoada e tem protegido quem a tem usado, de perigos de toda a espécie… Guardei-a para ti desde que nasceste! Os teus pais podem confirmá-lo! Eu até já ta deveria ter entregue mais cedo… Agora, passa a pertencer-te. Se a usares, servir-te-à de protecção! Trata-se de uma réplica da Estrela de David, tal como a que preenche a bandeira da nação de Israel, também chamada, pelos antigos, como“Sino de Saigão”.
- Estava a lembrar-me de que já vi algumas como essa, nas ourivesarias locais, avô! E que também havia lá outras parecidas, mas com um aro à volta…
. As que têm o aro à volta são uma imitação da verdadeira estrela, e são de origem ocultista, sendo usadas por quem se dedica ou se consagra ao ocultismo. Esta não!
- Está bem, avô! Já entendi! – Disse Juliana, a sorrir. – Prometo que vou usar esta jóia, e estimá-la sempre, e acredito em ti! Mas, olha que só o vou fazer porque mo estás a pedir! De cada vez que a segurar entre os meus dedos, lembrar-me-hei de ti e do que acabas de me dizer! Aliás, tu até podes partir fisicamente, bem sei que já não tens muito tempo para cá estar… Mas estarás sempre dentro do meu coração, pois bem sabes o quanto sempre tenho gostado de ti!
- Sei, sim, minha querida! Eu também sempre gostei imenso de ti! Sempre foste a minha preferida, entre todos os membros desta família! Lembro-me do quanto sempre nos demos maravilhosamente os dois!
- Sim, é verdade, avô! Quantas vezes nos divertimos juntos! Quantas vezes tu conseguias conversar comigo, como mais ninguém o conseguia fazer! E entender-me!
- E tu a mim! Se sempre te preferi, em relação aos teus irmãos e primos, e inclusive aos meus filhos, foi por encontrar em ti a única pessoa que melhor me compreendeu, ao longo de todos estes  anos! É por isso que te deixo esta jóia! Um dia poderás legá-la a algum dos teus filhos, se acaso os vieres  a ter! Ou a algum neto,como eu ta estou a legar a ti, neste momento! Entretanto, hás-de aperceber-te das vezes em que ela te há de proteger de perigos, maldade de outras pessoas, etc.
- Está bem, avô! Assim farei!
- Ó filha, se não te importas, é melhor pôr já o fio ao pescoço!
Juliana deixou que o avô, com os seus braços, compridos e emagrecidos, erguidos, devagar, passasse o fio em volta do seu pescoço, e segurou, depois, a jóia entre os seus dedos.
- Obrigada, avô! - Disse ela, beijando as faces do velhote, com emoção. - Agora, descansa, sim?
- Mas o que se passa aqui, pai? Que esforço foi esse que acabou de fazer, e para quê?- Disse o pai de Juliana, vindo da rua e chegando perto deles.
- Não foi nada de esforço, filho! Só acabei de oferecer uma coisa à Juliana, e de lha pôr ao pescoço!
- Está bem! Agora descanse, pai! Juliana, deixa-me ver o que é que o teu avô te ofereceu…- Disse Júlio, pai da jovem e filho de Gilberto. - Ah! A Estrela de David! Há muito tempo que não via o pai com ela ao pescoço…
- Pois, filho…- Respondeu o avô Gilberto. - Quando a Juliana nasceu, achei por bem guardar este fio, com a estrela, para lhos oferecer a ela, um dia. Não te lembras que a guardei desde que vi a Juliana recém-nascida no hospital? Tu e a Josefina já sabiam deste assunto, eu já vos tinha contado! E agora, achei que tinha chegado a hora! Aliás, já o deveria ter feito! Já não vou durar muito mais!
- Vá lá, avô! Não digas isso! Não penses nisso agora!
- Ó pai! Isso é coisa que se diga?
- Preparem-se todos, pois eu vou partir em breve! E não chorem por mim! Vivi uma vida longa! Fui muito abençoado com a família que me foi concedida por Deus! Sei que vou para junto d’Ele! A Vida continua para lá desta vida terrestre!
Passados poucos dias, efectivamente, Gilberto deixou os seus e partiu para a sua derradeira viagem…
Havia tido tempo de despedir-se de cada membro da sua família… Havia partilhado os seus pequenos tesouros com todos eles, oferecendo, ainda em vida, um objecto específico a cada um deles. Entre tudo isso, contavam-se pequenas peças de ourivesaria, em ouro ou prata, livros de grande valor sentimental, que depusera entre as mãos dos que mais gostavam de ler e melhor os pudessem apreciar e estimar, e outros objectos, tais como peças de porcelana miniaturiais, que coleccionara, e  outras coisas que sempre tivera em grande apreço, ao longo da vida.
 A quem abordava Juliana, entre os seus amigos e colegas de estudos, acerca do seu novo hábito de trazer sempre  aquele fio de prata ao pescoço, ela só respondia: - Uma oferta do meu avô! – E ficava-se por essa curta explicação. Os irmãos riam, e brincavam com ela, dizendo:- Olha a menina da estrelinha! - Mas Juliana sorria, pois sabia que o faziam com carinho. Ali não havia lugar para sentimentos mesquinhos. Eram muito unidos.
Um dia, uma colega nova da Escola, e que frequentava, segundo dizia,  havia algum tempo, uma  certa denominação religiosa, abordou-a e perguntou-lhe, por sua vez, porque é que ela usava aquele símbolo naquele fio,  e não se desfazia dele. Assegurou-lhe que não estava certo usar amuletos, se a sua fé estava posta em Deus.
- Arminda, mais uma vez, vou-te dizer, como tenho dito, a todos os que me abordam sobre esse tema: - Para mim, não é, nem nunca será, nenhum amuleto! Conheço o seu significado, sim, mas acima de tudo, é uma recordação do meu avô, ele mo ofereceu antes de morrer e eu uso-o em memória dele e da relação muito especial que nós os dois tínhamos. Nunca fui de crendices em amuletos, nem nada dessas coisas! Quanto à minha fé, continua firme e igual! Seguirei com as minhas convicções, como até aqui. E nem tu, nem ninguém, me fará mudar de ideias. Se não tens uma pessoa de família ou amiga que te faça sentir, por muitos anos, que és especial para ele ou ela, como foi o meu caso, com o meu avô, talvez não entendas do que te falo! Mas o amor que nos unia, e o bom entendimento que existia entre nós é que me faz trazer comigo esta lembrança dele. - Disse Juliana, acariciando a estrela de prata entre os dedos. - Continuará a ser um grande elo de ligação entre nós. Far-me-á lembrar de muitas coisas, tais como as nossas conversas e um mundo de vivências que partilhámos durante anos!
- Que sorte a tua, teres tido alguém assim, que te acompanhou, por tantos anos da tua vida! Bem vistas as coisas, de acordo com o que dizes, estás correcta! A intenção que pomos no que fazemos, e o modo como encaramos o que temos, como vivemos a vida, é que conta! Afinal, isso não é um objecto de adoração para ti! Pensei que o fosse! Acabo de aprender uma preciosa lição contigo: não devemos julgar ninguém pelas aparências!
- Ora assim é que se fala, Arminda! - Respondeu Juliana, com um franco sorriso para a colega.
O tempo foi passando… Juliana continuava na sua vida costumeira. As saudades do avô eram muitas, pois sempre tinham tido tempo para conversarem, partilharem opiniões sobre assuntos diversos, manifestarem o carinho que os unia desde o nascimento de Juliana. Haviam sido vinte anos de vida, que agora pertenciam a um passado que lhe era doce recordar, mas que, infelizmente, não voltaria mais! Por muito que amasse os pais e os irmãos, ninguém substituiria aquele avô, tão seu amigo, que agora já não podia estar presente… Isso custava-lhe mais que tudo. A relação com os outros familiares continuava idêntica. Mas ela começou a ficar mais melancólica.  De vez em quando, acariciava a estrela que continuava presa, com o fio, no seu pescoço.
 Uns escassos meses depois,  numa segunda-feira, Juliana tinha de apanhar, como de costume, um autocarro que a levava à outra cidade, onde estudava. Sem querer, a jovem atrasou-se, devido ao muito trânsito na rua, que não lhe permitia quase circular, atravessar a estrada. Ao chegar ao ponto de embarque do autocarro, viu, estarrecida, o autocarro a abalar sem ela. Ainda tentou acenar para que alguém avisasse o motorista, mas ninguém se apercebeu e o autocarro seguiu o seu rumo diário.
- E agora? Pensou a jovem. Mesmo que apanhe algum outro transporte, vou chegar atrasada às aulas! Raios! Mas porquê isto?
Se se metesse num táxi, a viagem sair-lhe ia muito cara… Não havia mais nenhum autocarro  para a cidade onde ela devia ir, naquele momento e nem tão cedo haveria, pois àquela hora, esse era único.Telefonou à mãe, numa inspiração súbita, e teve a sorte de que ela ainda não tivesse saído de casa. Contou-lhe, atarantada, o que sucedera.
- Oh, filha, ouve: Eu posso ir lá levar-te! Assim pode ser que não te atrases muito, ou nem sequer te atrases nada! Sabes que os autocarros vão parando em vários sítios! Nós só precisamos parar nos semáforos! Até podemos ganhar algum tempo… Onde estás?
- Aqui, na paragem, mãe!
- Certo! Vou já para aí! Não saias daí, eu não demoro, estou já a sair com o carro! Até já!
Josefina desligou a chamada, pois era sabido que não podia falar ao telemóvel enquanto conduzia. Caso contrário, arriscava-se a ser surpreendida por algum agente policial, e pagar uma elevada multa. Não valia a pena arriscar!
 Em escassos minutos, ali estava ela, com o carro, pois a casa não era longe. Juliana embarcou, aliviada. Foi desabafando com a mãe. Esta teve para ela a seguinte resposta, muito sábia:
- Ó filha! Nada acontece por acaso! Quem sabe se Deus não te quer naquele autocarro hoje? Lá terá as suas razões!
Pouco depois, lá iam elas pela estrada. Passando num ponto por onde o autocarro costumava passar, diariamente, esperava-as um cenário surpreendente:  Fora da estrada, o mesmíssimo autocarro, onde Juliana deveria ter embarcado, tinha acabado de sair da devida faixa, despistado, e encontrava-se semi-suspenso sobre uma ladeira em declive, quase a cair. Havia gente aflita lá dentro! Juliana levou as mãos à boca, abafando um grito… A mãe estacionou o carro ali perto, onde achou mais seguro. A polícia e os bombeiros estavam naquele momento chegando ao local… Mas, mesmo com todos os esforços, não conseguiram impedir que o peso do autocarro o fizesse pender demasiado para a frente. Gritos histéricos de passageiros aflitos ressoavam. Alguns tentaram correr para a parte do autocarro que ainda se mantinha na beira do passeio, afim de restabelecer algum equilíbrio na viatura e impedir que caísse. Mas a precipitação e a aflição deles gerou o caos dentro do pesado veículo que, oscilando, se despenhou, rolando por ali abaixo. Felizmente, a ladeira não era muito grande. Mas mesmo assim, houve  vários feridos. A confusão era ainda grande, e não se sabia, inclusive, se havia alguém morto. Mas alguns dos feridos estavam a ser transportados, em estado muito grave, para o hospital mais perto.
 Sem acção, dentro do carro, Juliana chorava, abraçada à mãe.
-Pronto, filha! Tem calma! Felizmente, tu não ias ali dentro e, felizmente, também, o que causou o despiste do autocarro, não me causou o acidente a mim, que podia ter tido a infelicidade de chocar com ele, ou despenhar-me eu! Só espero que não morra ninguém!
-Mãe! Lembras-te do que me disseste há pouco? Disseste que Deus não me queria nesse autocarro hoje, e que Ele lá tinha as suas razões!
- Sim, filha! E agora, estamos perante a confirmação do que eu te disse! Sabes, Juliana,  são muitos anos, a ver Deus actuar na vida de todos nós, de um  modo que, às vezes, não entendemos na hora, mas depois, a verdade se faz luz no nosso entendimento!
- Pois, então, Deus sabia que esse autocarro ia despistar-se hoje, e não quis que eu sofresse esse acidente atroz! O avô tinha razão! Ele disse-me, quando me deu o fio com a estrela, que eu havia de ver como essa jóia me havia de proteger de perigos e maldade humana, e outras coisas mais…
- Seja! Com ou sem a estrela, penso que Deus não quis que tu tivesses parte no accidente, hoje!
- Eu não aceitei muito bem o que o avô me tinha dito ao dar-me isto! Nunca vi este objecto como um amuleto da sorte ou de qualquer tipo de protecção! Como sabes, mãe, nunca liguei a essas coisas! E agora, sucedeu isto, e o certo é que eu nunca mais larguei o fio, desde que o avô mo colocou ao pescoço! Mas, mãe, eu também não acredito em coincidências, nem em acasos! Será que o avô tinha mesmo razão?
- Talvez, filha! As pessoas mais antigas tinham crenças e sabiam coisas que hoje se vão perdendo, por não serem transmitidas… E quando tentam transmitir-nos coisas dessas, a maior parte das vezes, rimo-nos das suas crenças e não ligamos nenhuma… Mas a verdade, é que eu vi, anos a fio, o teu avô com essa jóia ao pescoço, e só o retirou no dia em que tu nasceste. Quando ele te viu por primeira vez, tão pequenina, no berço do hospital, nunca esqueci o gesto dele: desprendeu o fio do pescoço e guardou-o. Nunca mais o vimos com o fio, e até chegámos a pensar que se tivesse  fartado dele. Não tínhamos entendido o porquê daquele gesto, naquele dia! Mas, algum tempo mais tarde,  ele explicou-nos que esse fio lhe havia sido legado pelo próprio avô dele, e antes, já havia passado de geração em geração! Ele disse que o fio, um dia, seria para ti! É, portanto, uma jóia com valor sentimental  e patrimonial muito grande. Sabes bem o quanto ele te amava!
- Sei, e é por isso mesmo que tenho continuado com isto ao pescoço! Mas, como continua tão brilhante, mãe, depois de tantos anos?
- Acho que o teu avô sempre cuidou dele muito bem. Isso é de prata, e de vez em quando, eu via o teu avô limpar esse fio e essa estrela, com um pano e um pó apropriado, que comprava aos ourives, por uma módica quantia. Hei-de procurar,  a ver se ainda lá está algo desse produto, em casa. Caso contrário, teremos que tentar comprar mais, a algum dos ourives da cidade! Assim, poderás limpá-lo, de vez em quando, e mantê-lo tão brilhante como agora!
- Mãe, eu hoje, já não me sinto com cabeça para ir às aulas! Fiquei chocada com este accidente!
 - Está bem, querida! Eu também fiquei! Vens comigo ao sítio onde tenho que ir, e depois voltamos para casa! De caminho, vamos primeiro tomar um café ou um chá, ambas, para nos refazermos do choque! Coitadas daquelas pessoas!
- Algumas delas são pessoas já minhas conhecidas! Espero que fiquem bem!
- Também eu, filha! Vamos!
 Dizendo isto, Josefina voltou a pôr o carro em marcha, e com muito cuidado, ao fazer as devidas  manobras, conseguiu sair daquele local. Dirigiram-se a um ponto da cidade onde havia comércio, e entraram ambas numa cafetaria, para tomar algo e tentarem recompôr-se do choque psicológico sofrido havia pouco.
Nessa semana, Juliana teve ocasião de fazer uma pesquisa através da Internet, para aprofundar os seus conhecimentos sobre o significado e simbologia daquele objecto que o avô, com tanto carinho e empenho, lhe havia legado. Gostou do que leu, e chegou à conclusão que, se o avô tinha razões para lhe recomendar o seu uso, ela tinha as suas próprias, para continuar a usá-lo, como até ali o havia feito. A sua fé continuava inalterável, e agradecia a Deus tê-la livrado, por Seu Infinito Amor, do terrível accidente.
 Alguns meses depois, ao sair de novo de casa, uma manhã, sentiu uma presença estranha e incomodativa atrás de si, na escada do prédio onde vivia com os pais. Virou-se, constrangida, mas não viu nada, nem ninguém. Devagar, para não cair, foi descendo a escada com cautela, apesar de sentir como se o que ali se encontrava, apesar de invisível, a quisesse fazer mesmo cair por ali abaixo… Pensativa, seguiu devagar para a rua, para ir para a escola. Como tinha aulas todo o dia, só voltou à tarde. No patamar da escada, ao chegar ao seu andar, que era o segundo, cruzou-se com uma vizinha, que cumprimentou, como sempre.
- Olá! Como estás, Ifigénia?
- Mal, amiga! Muito mal!
- Então, que se passa?
- Vem aqui ao meu apartamento que eu vou mostrar-te o que tenho….
- Está bem!
 Juliana subiu o lanço de escadas que faltava para chegar à casa dessa vizinha. Entraram no apartamento desta, que, levantando a blusa de malha que trazia vestida, deixou à vista de Juliana uma mancha negra que lhe cobria o espaço de um pulmão, de alto a baixo.
- Céus! Ifigénia! Como ficaste assim? Que sucedeu?
- Caí, Juliana! Rebolei um andar inteiro, lá no trabalho! Quase me ia matando!
- Isso tem mau aspecto, realmente! Já foste ao médico?
- Ainda não, mas irei amanhã! Terei de faltar ao emprego! Que remédio!
- Já devias ter ido! Sabes, esta manhã senti uma presença estranha na escada, ao descer... Parecia que alguém estava ali, a querer fazer-me cair por ali abaixo… Graças a Deus, eu não caí! Agora, estás a revelar-me o que te aconteceu a ti… Que coisa mais estranha! Que pouca sorte a tua!
- Pois, sim! Foi mesmo pouca sorte! Ao que parece, aquilo que queria magoar-te, a ti, foi comigo para o trabalho, e magoou-me a mim! Parece que estás mais protegida do que eu!
- Tudo indica que sim!
- Vou ter que arranjar algo que me proteja! Estou farta de só levar com azares!
- Bom, desejo-te as tuas melhoras! Vou até casa! Até logo!
- Até logo! Obrigada!
Intrigada, Juliana, ao entrar em casa, tocou de novo na sua estrelinha, e levou-a aos lábios. Pensou no avô, e logo de imediato, em Jesus, em quem ela tinha a sua fé posta.
- Obrigada, Senhor, mais uma vez! Já estou a ver que te importas bastante comigo!
Cerca de um ano depois, Juliana, ainda sem saber, ao certo, como, viu-se cortejada por um colega universitário. O namoro já andava na fase de paixão… Alberto aproveitava todos os momentos livres para rodear Juliana de atenções, passar o mínimo momento livre de aulas com ela. Ela quase não tinha um momento livre a sós, a não ser em casa… Tudo parecia ir correndo como vela de barco desfraldada ao vento, quando, sem esperar, um dia, Alberto chegou perto de Juliana e ofereceu-lhe um pequeno embrulho, que ao abrir, revelou uma caixinha de  joalharia. Juliana franziu o sobrolho, pois ainda antes de a abrir, teve um mau pressentimento. Abriu a caixinha que cabia na palma da sua mão, e encontrou-se com uma medalha que representava um símbolo pagão, um cupido, também ele em prata. Ficou séria, sem saber o que dizer…
- Então, não dizes nada, July? (Alberto costumava tratá-la por esse diminutivo, que não agradava por aí além à rapariga, mas resolvera tolerá-lo, para não o magoar).
- Não estava à espera desta surpresa…Obrigada… - Desculpou-se a jovem, sem outro argumento imediato, mas sentindo que isso também era verdade.
- Não gostaste?
- É muito engraçado, mas eu já tenho um enfeite no meu fio… e este não faz propriamente o meu género…
- Podias trocar! Afinal, esse ficava a ser um símbolo do nosso namoro, da nossa paixão! E deixavas de andar sempre com essa estrela… Não estás já cansada dela?
- Porque haveria de estar? Gosto muito dela! Tem um grande significado para mim!
- Está bem, July,  mas eu queria que deixasses de a usar e em vez disso, usasses esse cupido que te acabo de oferecer…
- Desculpa? - Surpreendeu-se Juliana. - Será que ouvi bem? Tu estás-me a dizer para trocar um objecto de que nunca mais me separei desde que o meu avô, que era a pessoa mais querida que eu tinha, e que já morreu, mo pôs ao pescoço, e tem para mim um valor sentimental incalculável, para usar um cupido, símbolo que a ti pode dizer-te muito, mas que a mim nada me diz?
- Nada te diz? Acabei de te explicar que para mim representa o nosso namoro, a nossa paixão…
- Será para ti! Não para mim! Não concordo, Alberto! Desculpa que te diga, mas vou recusar essa figura de prata que pretendes  oferecer-me! Eu sou cristã, e não gosto de figuras dessas. Nem para usar, nem para as apreciar! Se se tratasse de um coração, ainda poderia pensar em usá-lo junto com a estrela, ou numa pulseirinha! Mas nunca em substituição da minha estrela ! E,se não sabes, mas penso que sim, esse é um ídolo pagão!
- E como classificas essa estrela que tens aí pendurada? Também é um símbolo pagão! Um símbolo ocultista!
- Estás muito enganado! Vai pesquisar, já agora, para tirar a confusão que tens na cabeça. Este é o símbolo da Nação e da bandeira de Israel!
- E tu és de Israel, por acaso, ou o teu avô era-o? Judeus! Era só o que faltava! - Expressou-se Alberto com um ar de desprezo impresso no rosto.
- Que tens contra os judeus? Não sei se tenho ascendências judaicas ou não, mas que mal é que isso tem? Acaso, na Bíblia, não são eles o “Povo Escolhido” de Deus? Não te sabia tão preconceituoso!
- Isso quer dizer que não concordas comigo, então? Não queres usar o meu presente?
- Não! Não abdico do presente do meu avô! E não gosto desse ídolo pagão! Se tu és pagão, eu não sou!
- July! Pela última vez: ou aceitas o meu presente e o usas em vez dessa estúpida estrela, ou o nosso namoro termina aqui!
- Mas que descaramento! Com que direito me estás a fazer esse ultimato? Queres mandar em mim, é?
- Como teu namorado, tenho o direito de te exigir algumas coisas…
- Stop! Já vi que vais por um caminho que eu não pretendo seguir, Alberto! Como meu namorado, não tens direito nenhum de me fazer exigências destas! E, já agora, é realmente melhor acabarmos tudo aqui e agora! Veremos se consegues impingir esse cupido a outra rapariga…Seja ela quem fôr, não lhe gabo a sorte de deparar com um machista mandão e preconceituoso como tu! Ainda bem que revelaste essas tuas características a tempo!
 Alberto ia replicar algo, mas Juliana não lhe deu tempo. Furiosa, voltou a meter-lhe  impetuosamente o cupido de prata entre as mãos, dizendo-lhe:
- Fica sabendo que nem tu, nem o mais pintado. me fará tirar, nem este fio, nem esta estrela do meu pescoço! - Gritou Juliana,  completamente fora de si. - O meu avô não me obrigou a usá-los! - Prosseguiu ela, nervosa. - Simplesmente, ofereceu-mos com muito amor! Eu uso-os, como recordação,  porque amei sempre o meu avô, e continuo a amar a sua memória! E estou-me nas tintas para o que as outras pessoas opinem em contrário! Adeus! Passa bem!
Dizendo isto, virou costas e saiu a correr do banco de jardim onde se haviam encontrado havia momentos atrás. Alberto ficou ali, sentindo-se desarmado, frustrado, chocado com aquela personalidade forte que Juliana acabava de revelar. Quem diria que uma jovem tão meiga, e que parecia tão apaixonada, havia de se revelar tão independente, tão indómnita! Acabava de perdê-la! Sentia que esse rompimento era definitivo, sem apelo… Mas ele gostava de pensar que uma noiva tinha de obedecer ao noivo, uma esposa devia obedecer às ordens do marido… Ele só se esquecia de que, como cristã convicta, Juliana nunca podia, nem  sequer aceitar esse tipo de imposições, uma vez que ele nem era casado com ela, e ela nunca ia trocar o seu pendente de prata, com o que para ela significava, por um símbolo que, aos seus olhos, e de acordo com as suas convicções religiosas, era um símbolo contrário ao cristianismo.
Juliana acabava de apanhar uma grande decepção, mas ao mesmo tempo, uma lição muito importante: Não podia continuar, nem avançar, com um namoro mais comprometedor, sem conhecer bem a fundo a personalidade da pessoa com quem se envolvesse. E Alberto, detrás de toda a anterior meiguice, acabara de se revelar um dominador, uma pessoa que pouco se importava com a opinião dela e pretendia fazer-lhe imposições que ela não podia de modo algum aceitar de bom grado! Se Jesus, Ele mesmo, havia ensinado que os seus discípulos não se deviam deixar dominar por ninguém que o quisesse fazer a seu bel-prazer, humanamente falando, como podia ela deixar que Alberto, ou fosse quem fosse, lhe viesse com qualquer imposição, ainda por cima contrária às suas próprias convicções? Quem a amasse realmente deveria mostrar que a aceitava como ela era, e não como queria que ela fosse. Ninguém que a amasse deveria querer moldá-la, modificá-la, constrangê-la! Nas suas intermináveis conversas com o falecido avô Gilberto, haviam falado muita vez disso! Uma grande saudade dele  a acometeu, naqueles momentos de frustração, em que se sentia incompreendida, agredida moralmente.
E assim, Juliana continuou usando ao pescoço o abençoado fio de prata, com a sua singela mas brilhante estrela…
Muitas coisas já sucederam. Juliana já foi desviada de muita ocorrência maléfica. Já lidou também com muita incompreensão. Mas continua firme, nas suas decisões. Ela continua a crer que é a sua fé que faz com que Deus a proteja, e não o fio de prata legado pelo avô. Mas continua, como antes, usando a singela jóia, em memória desse avô, que tanto significou na sua vida. E que ela nunca esquecerá.

FIM

NELY

YO TE AMARÉ - IL DIVO

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O ANJO DE PEDRA - CONTO

DO MEU NOVO VOLUME DE CONTOS PORTUGUESES "TRANSCENDÊNCIAS"

O ANJO  DE  PEDRA

Olhando uma vez mais para o esboço do retrato dela, ele foi continuando a talhar o bloco de pedra, que ia, pouco a pouco, tomando forma. O rosto da estátua já estava quase todo pronto. Faltava, ainda, por trabalhar, o  corpo, que não estava completo… Se continuasse a trabalhar com afinco, durante tantas horas diárias, a escultura ficaria pronta dentro de pouco tempo…
Parou uns instantes, limpando, com as costas da mão, o suor que pingava do rosto, abundante. Estava-se no Verão. A tarefa era árdua. Mas não queria demorar-se muito com aquele trabalho, feito por conta dele mesmo, uma vez que tinha, para além disso, uma encomenda, para uma galeria local, de uma colecção de quadros. Estes iriam figurar numa exposição que, dentro de poucos meses, iria decorrer… E ele queria ter isto já pronto nas próximas semanas… Devia isso à sua própria consciência…
Alexandra pousara para ele durante horas sem fim … Haviam sido tão felizes, juntos! Ele havia-lhe dito que ela merecia servir de modelo para uma bela estátua… Ela rira-se, achando piada, mas sem levar a sério as suas palavras… Ele insistira e ela consentira em pousar para ele… Vestira-se de várias maneiras, e até pousara nua… Mas, entre os vários retratos dela, aquele  de que ele mais gostava, era um em que ela figurava vestida com uma longa túnica branca, de amplas  mangas… Ela deixara o cabelo solto pelos ombros,  com os seus caracóis louros acinzentados, a tocar na túnica de alva brancura, com os seus doces olhos verdes de meiga expressão, e o rosto bonito, de feições gentis. Parecia um anjo, naqueles momentos em que pousava… Alexandra era mesmo linda! Eles haviam sido amigos de infância, e ele assistira, ao longo dos anos, à transformação que nela se operara… da terna e alegre criança de cabelos em saca-rolhas, que com ele partilhara tantas horas felizes de brincadeiras, à jovem cujo retrato ele havia feito no papel… Até pintara quadros em que ela lhe havia também, servido de modelo… haviam-se casado quando ela fizera vinte anos… Já havia dois anos desse acontecimento…
Era o retrato dela com a túnica, o que ele havia escolhido, para esculpir, havia pouco tempo… às vezes, em momentos de íntimas ternuras, chamava-lhe “Meu anjo”… Ela sorria-lhe e respondia-lhe baixinho: “Não sou nada um anjo!... Não me chames isso!” Mas ele insistia: “Tu és tão bela, tão doce… por isso, te chamo meu anjo!”
Lágrimas amargas correram dos seus olhos… Havia seis meses atrás, Alexandra morrera, vítima de uma doença rara, galopante…Logo depois disso, ele metera na cabeça realizar aquela escultura como homenagem…
Os meses passaram… A estátua ficara pronta e, para uma homenagem derradeira, acabava de ser colocada junto à campa rasteira, de mármore, no cemitério. Naquela parte do cemitério, não havia mais nenhuma estátua. Alguns familiares da sua jovem e falecida esposa quiseram assistir a essa homenagem-surpresa… Ali se encontravam, também, os pais e irmãos dela… A estátua estava tapada com um pano, aguardando alguns discursos e a leitura de poemas por parte de algumas pessoas amigas.
Rodolfo destapou, então, a estátua, que levara algum tempo a realizar…
Exclamações de assombro se fizeram ouvir… pois a figura de pedra que ali havia sido fixada, em tamanho natural, branca como a neve, era a de um anjo lindo, de asas abertas, braços estendidos para a frente e cabeça erguida, rosto sorridente… e esse rosto continha a expressão, esculpida na perfeição, da sua amada Alexandra…
Passado o primeiro momento de assombro, as pessoas presentes concordaram que a estátua estava perfeita, era linda, e refletia perfeitamente o que a jovem tinha sido em vida: um verdadeiro anjo… e como um anjo, a sua estadia neste mundo havia sido breve…
De regresso a casa, exausto, estendeu-se, por momentos, no sofá da sala deserta. Adormeceu, involuntariamente, pois nos últimos dias, trabalhara intensamente e dormira pouco…
Encontrou-se, sem saber como,  num campo florido, cheio de sol, e viu vir direito a si um vulto todo branco, luminoso, cuja túnica alva esvoaçava. Vinha mesmo direito a ele! Quando o vulto ligeiro e feminino chegou perto, parou, ficando numa posição e numa atitude diferente, estranha… Ele aproximou-se. A figura, que lhe parecera viva, transformou-se em pedra. Assustado, surpreendido, viu que a pedra era apenas aparente, como uma estátua que ganhasse, de repente, vida! A cabeça moveu-se. Asas se lhe abriram, um braço se ergueu na sua direcção. Ele recuou, sob o choque. Os olhos fixaram-no, enquanto a boca se abriu para falar-lhe e foi então quando reconheceu o rosto de Alexandra, em vez do rosto de pedra, de feições indistintas que vira primeiro.
Ouviu e reconheceu a sua voz meiga e triste:
- Rodolfo! Porque fizeste esta estátua? Porque me quiseste aprisionar num bloco de pedra? Eu disse-te, tanta vez, que não era nenhum anjo! Agora, que sem amarras terrestres, eu poderia ser feliz, estás a prender-me a alma neste lugar desditoso!
De facto, à volta da figura que lhe falava, viam-se, subitamente, campas com cruzes…
 A figura desvaneceu-se de diante dele, e viu-se diante da escultura que inaugurara, umas horas atrás. O rosto do anjo continuava idêntico, mas de repente, ficou sério, e lágrimas grandes rolaram pelo rosto de pedra, que o fixava…
Rodolfo agitou-se, aflito… acordou…
- Meu Deus! O que foi que eu fiz? Realmente, não devia! E agora, como vou remediar isto?
O mal estava  feito! Não podia,  agora, ser já alterado…
- Perdoa-me, Alexandra! Perdoa-me por amar-te deste modo, demasiado! Perdoa-me, meu amor! E agora, que posso fazer?
A sua pergunta ficou, naquele momento, sem resposta…
Porém, ao voltar a adormecer, nessa mesma noite, após várias horas de desassossego, voltou a ter sonhos estranhos… viu-se  a chegar diante da campa de Alexandra, mas quando olhou para o anjo, este tinha o rosto mutilado, marcado por  grossos veios semelhantes aos de lágrimas que escorressem… A expressão alegre que esculpira nas feições de pedra tinha desaparecido…Uma das asas estava quebrada… as vestes de pedra mutiladas em várias partes… A voz de Alexandra soou, triste e suave, no meio da sua desoladora solidão:
- Rodolfo, suplico-te, destrói esta estátua! Antes que seja tarde de mais! Quebra este anjo! Agradeço a tua intenção! Sei que foi por amor que o esculpiste… Mas não deves representar-me desse modo! Retira este anjo de pedra daqui! Por favor! Suplico-te!
Voltou a acordar, cheio de um suor gelado… Sentiu como se Alexandra tivesse  realmente estado ali… Julgou sentir uma baforada leve, tal como um pequeno resquício, do perfume favorito dela, a passar junto do seu rosto… Olhou para a cómoda, frente à cama… Sobressaltou-se: o frasco de perfume de Alexandra ali estava, como sempre, pois ele não o havia tirado dali, mesmo depois de ela partir… Mas estava destapado, no meio da superfície de cima da cómoda, coisa que não era normal. Havia meses, desde a morte da jovem, ninguém tocava nesse frasco de perfume, nem em nada dela, por uma questão de respeito. Outro indício: a escova com que ela, durante muito tempo, se penteara, e que costumava estar na casa de banho, encontrava-se ao lado do frasco de perfume! Ele ergueu-se, sentindo ainda o perfume e vendo que a escova tinha cabelos dela ainda presos, o que também não era normal, pois ele via essa escova todos os dias, na casa de banho, arrumada junto com outras, numa caixa própria, sempre limpa… como ela a havia deixado!
- Alexandra! Querida! Estiveste… ou ainda estás por aqui! Prometo-te que hoje, mesmo, vou tratar dessa infeliz escultura! Prometo-te, repito! Mas que ideia peregrina eu tive, ao esculpir esse anjo! Juro-te que o destruirei!
Quando ele passou pelo corredor, para se dirigir à cozinha, viu que um pequeno "bibelot" de marfinite pintada, que era dos favoritos de Alexandra e que representava precisamente um anjo em miniatura, e que ela própria havia pintado em tempos, estava tombado no chão, partido em vários pedaços… lembrava-se agora de ter ouvido um ruído um bocado distante, como o da queda de um objecto, no meio do seu sono, durante a noite… A mensagem era clara: Ela rejeitava agora, onde quer que se encontrasse, qualquer representação angelical!
Era bem cedo e decidiu sair, antes que começasse a vir muita gente,  dirigindo-se ao cemitério, para falar de imediato com o responsável. Sendo ele próprio o proprietário daquele talhão novo onde se encontrava a campa de sua esposa, e sendo ele o autor da escultura, o encarregado do lugar não estranhou, quando Rodolfo lhe disse que tinha de levá-la, pois tinha de lhe fazer alterações. O homem, solícito, ainda o ajudou a desmontar e carregar a linda, mas malfadada escultura, para o cofre do seu carro, no qual havia sido trazida para ali, dias antes. Se a família dela perguntasse algo, sobre esse  assunto, a resposta seria a mesma que havia servido para o encarregado. Pelo menos provisoriamente… Um dia explicaria a verdade aos seus familiares, pois sabia que tinham o direito à verdade acerca desse assunto…
Afastando-se dali com o carro, Rodolfo guiou, determinado, para fora da cidade. Queria ir para um sítio ermo, junto à Natureza, onde ninguém o perturbasse, na execução da tarefa final que tinha a cumprir para com Alexandra, respeitante à escultura, e que não ia ser nada fácil! Mas era a última vontade de sua amada, e ele tinha de cumprir a promessa feita na véspera, e na própria manhã, ao acordar.
Após guiar durante alguns quilómetros, chegou perto de um pequeno monte, junto a uma cascata. Era um lugar deserto. Parou o carro, estacionando-o de modo a poder extrair sem problemas a estátua. Abrindo o cofre do carro, apanhou um par de cordas, grandes, grossas e fortes, que trouxera com ele. De modo engenhoso, conseguiu envolver e prender a estátua, com as referidas cordas, puxando-as a seguir para fora.. Após um bocado de esforço intenso, conseguiu, finalmente, que o anjo de pedra ficasse no chão. Parou uns instantes, para retomar fôlego. Depois, voltou a pegar nas extremidades das cordas, puxando-as, andando para a frente, parando e recomeçando até ter saído da beira da estrada para uma clareira, no meio das árvores. Algum tempo tinha decorrido desde que saíra do cemitério, rumo ao campo…Mas ele sabia que não voltaria para casa antes de concluir o que tinha em mente…
No meio da clareira, deixou a escultura branca, voltando ao carro, que não estava longe. Tinha de ir buscar alguns objectos, inclusive ferramentas, para levar a cabo o ritual que tinha em mente. Ele já lera algo a respeito de rituais para certas situações e esperava conseguir levar este a cabo!
Depois, com as ferramentas, propunha-se despedaçar toda aquela obra de arte, que executara com tanta perfeição, tão árduo trabalho, e tanto amor! Mas o amor que ainda sentia por Alexandra era maior, e devia levar avante aquele plano final, para libertar a sua alma que ele, involuntariamente, prendera naquela escultura. Ele desejava que ela fosse totalmente livre, e voasse, feliz e liberta para o Céu… Quando voltou, finalmente, e com o anjo erguido com esforço, em pé no meio do terreno, começou  a dispôr velas, um queimador de incenso e outras coisas  necessárias para dar início ao ritual, em volta da estátua, tal como  vira num livro de rituais, que trouxera consigo. Acendeu as velas e o queimador de incenso, e começou então a dizer as frases que ia lendo nesse livro, para esse efeito… À medida que ia falando, audivelmente, viu como uma névoa ir saindo de dentro da estátua…  Quando a ladainha ritual acabou, essa névoa deteve-se perto da estátua, e ele apercebeu-se que tomava a forma de uma pessoa… Ficou tal e qual com a aparência em vida, do vulto querido de Alexandra, e  disse-lhe, devagarinho e a sorrir, o seguinte:
-Obrigada, meu amado Rodolfo! Finalmente, estou livre! Fui imensamente feliz contigo! Não chores por mim! Segue a tua vida! Eu também vou ser feliz, lá em cima, onde já sou esperada por Aquele que me concedeu a vida aqui e me vai conceder, agora, a vida eterna, por sempre ter crido n’Ele ! Adeus, meu amor!
- Adeus, Alexandra, querida! Farei o que me pedes! Adeus!
Então, com um gesto de aceno, o vulto querido foi-se afastando dali, lentamente, e depois, foi subindo lentamente, e perdeu-se de vista no ar…
Quando deixou de ver o vulto amado, Rodolfo pegou num machado e começou, finalmente, a destruir a sua obra… Levou algum tempo, mas conseguiu o pretendido. Depois,com uma pá,  fez uma cova suficientemente larga e funda para onde fez cair os muitos destroços de pedra… A tarde avançava já. Cheio de suor e de pó, dirigiu-se à cascata e lavou-se, mergulhando no jorro da água fresca.
Depois disso, cansado, mas aliviado, pelo dever cumprido, sentou-se atrás do volante. Comeu alguns alimentos, que havia trazido consigo, pois não se alimentara antes. Só depois disso, pôs o carro em marcha, para regressar a casa. Agora, teria de seguir com a sua vida em frente, como Alexandra lhe pedira. Mas guardá-la-ia no seu coração para toda a vida!

FIM

NELY

Il Divo - Abrázame

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

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Conto - A Coragem de Ser Feliz

“Um cobarde não pode saber o que é a felicidade. É preciso coragem para ser feliz.” – Armand Salacrou



A  CORAGEM  DE  SER  FELIZ

Márcia releu, pausadamente, o que acabara de escrever no seu diário:
“Numa volta súbita do caminho, o Amor ressurgiu, qual um ladrão, um assaltante, com uma face nova e inesperada... O assalto foi repentino, surpreendente e doce... Compreendi algumas coisas, em que antes, ainda eu não havia pensado... Eis algumas delas:
1)    – Realmente, o Amor não tem idade!
2)    – Nem se dobra a preconceitos...
3)    –Muita coisa, entretanto, e com o tempo, mudou...
4)    –Há sempre a possibilidade de amar, se tivermos o coração disponível e não nos importarmos com experimentar formas novas de amar...(Isto, falando mais de sentimentos, e menos de sensações físicas!)
5)    –O Amor tanto pode ser apenas vivido na alma  - e deriva assim em amor platónico – como pode ser transposto para expressões corporais – e aí, transforma-se em paixão! Para isso, a escolha pode, ou não, depender de nós...
6)    Para amar, às vezes, é preciso pagar o preço...
Não me importo! Pagarei o que fôr preciso! Não vou renegá-lo, desta vez, nem mandá-lo embora...
Mas farei o que estiver ao meu alcance para expressá-lo e vivê-lo tanto quanto puder! Sabendo que sou correspondida... Estou tão feliz!”
Satisfeita, pôs a data, assinou, como sempre o fazia quando escrevia nesse diário seu, íntimo. Vivendo sozinha, e sem ter com quem desabafar, havia achado nisso um meio de aliviar algum stress e ao mesmo tempo, pôr as ideias em ordem. Fechou, finalmente, o livrinho, que comprara havia pouco tempo, em substituição do anterior, cujo espaço para escrever se esgotara algums dias antes.
Ficou, por um momento, ainda, sentada, pensando em Valério, o seu amor descoberto recentemente. Valério tinha menos dez anos do que ela. Mas ela não se importava com a diferença de idades, nem ele tampouco! Haviam sentido o flash da paixão súbita, logo ao conhecerem-se. Um primo dele os apresentara, um par de meses antes, numa festa de aniversário familiar. Aos quarenta e cinco anos, Márcia, que havia permanecido vários anos sozinha e nunca casara, após alguns namoros inviáveis, encontrara, por fim, alguém com quem, finalmente, se identificava em muitas coisas.
Valério e ela haviam continuado a encontrar-se e também, nesses encontros,  conversado bastante, até há poucos dias, e haviam chegado ambos à conclusão que eram muito parecidos, na sua forma de estar na vida. Mais que uma amizade, uma faísca repentina de paixão acendera-se entre ambos. Não puderam e  nem quiseram ignorar esse facto. Sentiram-se tão bem juntos, no primeiro encontro, que, de mútuo acordo, tudo fizeram para reencontrar-se, diariamente, ou falarem, apenas, pelo telefone e até mesmo pela Internet.
 Havia alguns anos que Márcia se independentizara de sua família e vivia apenas ligada ao seu trabalho de administrativa numa empresa de contabilidade, em Tavira. Alguns dos seus colegas, agradados com ela, haviam tentado a sua sorte, sem conseguir mais do que serem educadamente rejeitados. Nenhum deles, por muito cortês que fosse, havia conseguido que lhe sucedesse o que agora lhe sucedera, em relação a Valério...
Valério era um rapaz interessante, sem que se lhe pudesse considerar “bonito”. A ela, parecia-lhe óptimo, assim, tal e qual ele era: loiro, mas com uma tonalidade de cabelo meio aruivado, olhos verdes claros, expressivos, um rosto de maxilares bem definidos,  e nariz aquilino... Não usava barba nem bigode. Dizia não gostar disso. Sempre muito bem arranjado e moderno, ou não fosse ele um jovem!
Esse rapaz acumulava profissionalmente as funções de socorrista da Cruz Vermelha, e de técnico de manutenção na própria delegação dessa instituição, em Tavira, cidade em que viviam tanto ele como Márcia.
Conforme Márcia se levantou da cama, onde se sentara para escrever no diário, pouco depois de acordar, nesse seu dia de descanso, e querendo guardar o diário onde sempre o guardara, numa gaveta de um dos móveis do seu quarto, foi interrompida nesse seu movimento pelo toque do telemóvel. Apanhou-o de cima da mesa de cabeceira, verificando que se tratava de uma das suas tias. Atendeu, com uma careta de desagrado, prevendo logo o pior... Depois dos breves cumprimentos dados com uma voz seca e ríspida pela tia, como de costume, o ataque esperado não demorou:
- Já soube que arranjaste um namorado!- Isto foi dito em tom de censura inequívoca.
- Sim, tia, é verdade!- Respondeu Márcia, convicta.
-Então, tu não tens vergonha de dar corda a um homem tão mais novo do que tu? Um badameco qualquer que só pensa decerto em divertir-se e aproveitar-se de ti!
- Vergonha? Vergonha, porquê? Em primeiro lugar, não fizemos nem estamos fazendo mal a ninguém, nem ele, nem eu! Em segundo lugar, eu não lhe dei corda nenhuma, porque ele não se meteu comigo! Foi outra pessoa que nos apresentou um ao outro! E em terceiro lugar, o Valério não se anda a divertir à minha custa nem a aproveitar-se de mim, sequer! – Respondeu Márcia, já furiosa pelo ataque de que estava a ser alvo.
-Moça! Isso fica-te mesmo mal! Põe-te no teu lugar! Agora, com a tua idade, não precisavas disso para nada! Ou estás assim tão faltada de ter um homem para a cama? Deve ser isso que ele quer de ti, apenas e...
Márcia, fora de si, interrompeu-a, gritando, já:
- Tia, isso é a sua maneira de pensar! Não é a minha! Eu é que sei do que preciso ou não! A vida é minha! E ninguém tem nada que ver com isso, nem sequer você! A idade também não interessa! Eu não sou nenhuma adolescente a quem tenham que ralhar e advertir! E o Valério também não é nenhum badameco! Você está a ofender o rapaz sem sequer o conhecer!
-Não queres escutar conselhos de ninguém, pois não? Esse moço não é para ti! Tem juízo!
-Olhe, tia, se é para estar contra mim e vir irritar-me, dispenso que me ligue, de hoje em diante! Passe bem!- explodiu Márcia, após o que desligou o telemóvel, pondo fim àquela conversa azeda, que a indispusera de imediato.
-Era só o que me faltava agora! Falsos moralismos e um descaramento destes!- Resmungou para si mesma a meia voz.- Ainda por cima, preconceitos, ideias tão ultrapassadas! E intromissões! Quase que me estraga o dia!
De súbito, mudou de atitude, pensando: - Não! Não vou permitir tal coisa!
Márcia acabara, com efeito, de se lembrar do estudo que havia feito, algum tempo antes, através de um livro de uma escritora americana,  que ensinava as mulheres a mudar o seu comportamento para com elas mesmas, e a desenvolver a sua auto-estima. Essa obra ajudara-a imenso, e agora, essa ajuda estava já a dar o seu fruto: Aprendera a gostar mais de si, e a dar menos importância a opiniões alheias...
Entretanto, tocaram à porta. Márcia vestiu instantaneamente uma vaporosa e transparente espécie de casaquinho de seda côr de rosa por cima das peças íntimas de renda  da mesma côr, que tinha vestidas e com que se deitara na véspera. E foi abrir, pois a campainha insistia. Ela correu para a porta do apartamento, e espreitou pelo olho desta, para ver de quem se tratava, pois não estava disposta a aturar mais gente estúpida e chata...
 Era Valério, e isso fez mudar a expressão do seu rosto, de imediato, destrancando a porta, e sorrindo radiosamente para o rapaz.
-Olá, querida! Como estás? - Disse Valério, olhando-a nos olhos, e sorrindo, enquanto entrava. Quando já se encontrava dentro do apartamento, apertou,  de imediato, Márcia, nos seus braços, e beijou-a apaixonadamente. Ela correspondeu-lhe  totalmente, passando os braços em volta do pescoço do seu amado. Quando se soltaram, ele soltou um assobio de apreciador, dizendo também:
-Sim senhora! Maravilhosa maneira de receber um homem! Estás muito sexy, nessas roupas íntimas! Adorei! Por detalhes como esses, da tua parte, é que estou tão apaixonado por ti! Sabes valorizar-te e cativar-me ao mesmo tempo!
-Amor! Estou tão feliz agora, que tu estás aqui comigo! Mas não te esperava ainda  a estas horas! Bela surpresa!
- Ia a passar aqui perto e resolvi vir ter contigo!
- Fizeste bem! Eu estava a precisar de te ter aqui!
- Hoje estou livre, não tenho serviço que fazer, e então, pensei: que tal aproveitarmos o dia e ficarmos juntos? Já que hoje é Sábado... Não tens trabalho hoje, pois não? Tens algo combinado com alguém?
-Não, meu amor! Nada disso! Hoje é mesmo dia de descanso!
Márcia brindou-lhe um sorriso radioso, quando ele a  voltou a apertar em seus braços, acariciando-lhe os cabelos pretos lisos e fartos, presos num rabo de cavalo comprido e frouxo.    Ele adorava tê-la nos braços enquanto olhava para aquele belo rosto feminino, um pouco marcado, para aqueles olhos côr de avelã que riam, fixando os seus. Outro beijo apaixonado lhes uniu de novo as bocas sedentas. Pouco depois, entraram no quarto dela e sentaram-se sobre a cama, partilhando carícias e beijos, até fazerem amor intensamente.
Quando se sentiram saciados, ficaram deitados lado a lado sobre a cama em desalinho, conversando.
-Sabes, Valério, pouco antes de teres tocado à porta, recebi uma chamada no telemóvel... Livra! Que saco!
- Quem era, querida?
-Uma das minhas tias. Chata e estúpida! Sempre com aquela mentalidade tacanha!
-Que te queria ela?
-Quis impingir-me o falso moralismo dela, como sempre! As notícias  também correram depressa...
-Então?
-Ela já soube de nós dois, nem sei como, e desatou a dizer que eu não tenho idade para namorar contigo, que tivesse juízo, que tu não eras para mim... que eu não queria ouvir os seus conselhos... como se eu precisasse disso, com a minha idade! Safa!
A sorrir, Valério pousou uma mão sobre o corpo feminino despido, encostado ao seu, na cama. Acariciou aquela pele branca e suave, exposta, passeando as mãos pelo corpo bem feito que ele adorava. E disse, de modo maroto:
- Tens idade para ser fogosa e sexy, como és comigo, e para teres um namorado que te adore e te valorize, como é o meu caso!
Estavam a começar a sentir frio, e meteram-se entre as mantas. Então, prosseguiu encarando-a, agora seriamente:
-Tens de ser forte, meu amor! Não ligues, nem te apoquentes com essas pessoas! Nós dois sabemos que nos amamos, que gostamos de estar juntos! É isso que conta, não é verdade?
-Sim, querido! É isso mesmo!
- Estás disposta a lutar juntamente comigo, contra os preconceitos dessas pessoas?
-Claro que sim! O nosso amor dá-me muita força!
- A mim também!
-Vamos unir esforços!
-Sim! Precisas de ser mesmo forte e corajosa!
-Bem sei! Podes crer que eu não vou desistir de nós! Já não saberia viver sem ti! Sem o nosso amor!
-Nem eu sem ti, Márcia! Amo-te!
-Adoro-te, Valério!
O tempo ia passando, e o cerco de críticas e desaprovação ao amor que eles sentiam, à relação existente entre eles ia-se apertanto, densificando. Não era só Márcia que estava a ser criticada, e contestada de vários lados. Familiares e amigos de Valério também não se privavam de falar mal de Márcia a ele. E de querer retirar-lhe a sua amizade. Tudo tentavam, para o fazer desistir de Márcia. Já se relacionavam com muito poucos, de entre todos os que antes, quer amigos quer familiares, se davam com ambos.
Diariamente, Márcia continuava a escrever no seu diário e a rever  os apontamentos vários, dos livros de auto-ajuda que lera antes e de outros que lia agora, e dos quais anotava ainda tudo o que achava mais relevante. De vários testemunhos que também lera, chegara à conclusão que não era a única, nem a primeira a ter tais lutas sociológicas, mas que poderia triunfar. Tinha Valério a ajudá-la, e isso para ela era maravilhoso, tendo também em conta que ele próprio estava a ser atacado, e a ter de lutar em condições muito semelhantes às suas!
De lágrimas nos olhos, muitas vezes, Márcia desabafava de viva voz com o seu amado,  e ele consolava-a o melhor que podia. Como Márcia vivia sozinha e Valério com a sua família, ele era atacado mais directamente, e mais assiduamente pelos da sua casa. Estes lhe faziam já a vida negra, com as críticas e implicâncias agora diárias a que o sujeitavam sem dó, e de má cara. O ambiente familiar estava a ser insuportável para o rapaz. Até ao dia em que, saturado, saiu decididamente e definitivamente de casa, indo juntar-se a Márcia, após os diversos convites insistentes dela própria para que o fizesse. Foi ter com ela, para viverem a dois no seu pequeno apartamento da periferia da cidade.
Depois de um momento de respirar fundo e descansar um pouco, sentado no sofá da pequena sala, onde um bom gosto evidente, da parte de Márcia, havia conferido àquele espaço uma boa nota de conforto, Valério desabafou, por sua vez, como já o vinha fazendo também ele, mas desta vez, já aliviado:
-Querida, eu já não aguentava mais! Nunca pensei que as pessoas fossem tão preconceituosas, em pleno século vinte e um! Arre! Ainda bem que pude vir viver contigo! Obrigado por me quereres a teu lado, meu amor! É tão bom estarmos juntos e tão unidos!
-Queriam separar-nos, não era? Pois, com tudo o que fizeram e disseram, só conseguiram que ficássemos mais unidos do que nunca, querido!- Respondeu ela, que, estando sentada ao lado dele, ergueu-se para sentar-se no colo dele, abraçando-o, acariciando-lhe o rosto e os cabelos louros.
Depois, ergueu-se, dizendo:
-Vou pôr um pouco de música para nós dois! Vais ver como vamos ficar bem!
E dirigiu-se ao pequeno leitor de CD’s que ali estava, perto da televisão. Procurou rapidamente um CD que logo pôs a tocar, e voltou a sentar-se no colo de Valério, beijando-o, enquanto a música começava a soar. A voz inconfundível de Julio Iglesias fazia-se agora ouvir, naquele espaço, onde só eles podiam disfrutar e compreender a mensagem adequada e escolhida com critério por Márcia, que já a escutara antes, inúmeras vezes: “ Amantes, oh, oh, oh, amantes... para la gente somos solo amantes, por vivir juntos, sin estar casados, por no cerrar la vida en un contrato..” , “amantes, con el coraje de ir siempre adelante, vivir la vida entera a cada instante, sin importar lo que murmurén y y hablén”...
-De facto, esta música é o retrato musical daquilo que nós estamos a passar, a viver!- disse Valério, apertanto Márcia em seus braços e cantando depois, em uníssono com a voz do cantor: “Amante, me gusta ser tu amante”... E interrompeu-se para beijar a sua namorada, agora assumida como companheira e amante, e  apertá-la ainda em seus braços, com uma doçura de quem tinha a firme certeza do que sentia por ela, do que queria viver ao lado dela.
E concluiu, olhando-a docemente nos olhos:
-É isso mesmo: amantes!  E, como diz o ditado: “Quem não quer couve, prato cheio!” Adoro ser teu amante, sabias? Não com a conotação de desprezo com que essa gente o diz, mas no verdadeiro sentido do termo: amante, segundo o dicionário, é aquele ou aquela que ama outra pessoa! Tem um significado maravilhoso! Pelo menos para aqueles que se amam realmente, tal como nós! É doce poder dizer-te “amo-te!”, e chamar-te “minha amante”! É grandioso!
Os olhos chamejantes de paixão de ambos não paravam de se fitar.
Márcia disse, após outro beijo apaixonado:
- Nem mais, meu amor! Eu também adoro ser tua amante! Eles vão aprender connosco o que é o verdadeiro amor, vão ver o quanto têm estado enganados, a nosso respeito, e vão saber, duma vez por todas, que este nosso amor não tem barreiras, e que quando se ama de verdade, não há lugar para os preconceitos e os tabus, numa relação!
-Que passem bem sem nós, já que se afastaram, e nos puseram de lado! Também não precisamos deles para nada!
- Como dizia a minha querida avó, e que em paz descanse: “Quanto menos vulto, melhor claridade!”
-Mesmo!- Respondeu Valério, ainda a rir.- Anda daí, miúda! – E levantou-se. -Vamos jantar fora, para comemorar! Hoje convido eu! Vai pôr-te chique, porque linda já tu és! Vá! E eu também vou trocar de roupa, para não fazer má figura ao lado da minha linda estrela!
- És um querido! E também és um autêntico borracho! É para já! E ai daquela que te cobiçar! Sou ciumenta e possessiva, quando é preciso! –Exclamou ela, feliz.
-Isso mesmo! Eu não penso e nem preciso olhar para mais nenhuma rapariga, senão para ti! E os que te cobiçarem saberão  também que tu és só minha!
Nessa noite, foram a um pequeno restaurante do centro da cidade. Deslocaram-se no carro dele. O jantar, num canto discreto do restaurante, decorreu agradavelmente, num ambiente calmo e intimista.
Enquanto ali estavam, passou na televisão, que estava acesa ali perto, a música do genérico de uma novela que todas as tardes dava num dos canais portugueses. Eles não viam, nesse momento, a televisão, que não estava ao alcance do seu ângulo de visão naquele lugar, mas a bela voz feminina de Isabel Campelo, que era quem cantava essa canção, era melodiosa, e conseguiam ouvi-la perfeitamente: “Nunca digas adeus... nunca digas adeus.. vais provar o sabor da paixão... Nunca digas adeus, nunca digas adeus e o amor sairá da prisão”...
Márcia, sorrindo para o seu companheiro, ao escutá-la, disse-lhe:
-A história das personagens principais desta novela é parecida com a nossa! Esta canção é linda! É praticamente a nossa canção, apesar de que a outra, do Julio também se adecua a nós!
-Tens razão! Temos de descobrir quem a canta e procurar o CD para nós dois!
- Boa ideia! Não sei bem quem a canta, mas em casa, vamos fazer uma pequena pesquisa, na Internet, que é fácil, porque isto é a música da novela...
-Para isso, podes contar comigo! Já sabes quem é o Às do teclado! –Disse Valério, a piscar um olho.
-Sim! É uma das tuas diversas habilidades! Adoro-te!
-E eu a ti! Por ti, faço tudo!
-Fazemos uma bela dupla!
-Pois fazemos! Somos cúmplices!
A rir, ergueram ambos os copos onde luzia um apetecível vinho rosé, cor de romã, cristalino, e brindaram:
-A nós dois! À nossa saúde!
-Sim! E à nossa paixão!
E depois, ambos:- Tchim, tchim! Ah!Ah! Ah!
E os outros, os que os desaprovavam... que fossem “dar uma curva ao bilhar grande!”
Eles estavam juntos, felizes, e iam permanecer assim.


FIM

Nely, 
Outubro 2017
( Do meu livro de contos "Novo Rumo")