terça-feira, 28 de março de 2017

CONTO - SOLTEIRO POR ESCOLHA PRÓPRIA

“Não têm dono os caminhos
Que pela vida pisamos
Vamos andando sozinhos
Com as forças que encontramos.”
-Isolina Alves Santos, em “ Semeei Rosas Ao Vento”, p.103

SOLTEIRO POR ESCOLHA PRÓPRIA

Apresento-me: o meu nome é Gilberto Fraga. Mais conhecido p’lo “professor Gil de Ciências Naturais”. Vivo aqui, nesta casinha, com o meu cão, Piloto. Só os dois, por escolha minha. Um pouco mais acima do que a aldeia, para estarmos mais sossegados, os dois. Gosto de aqui estar, só eu e ele.
O tempo, hoje, está um bocado fresco, e desagradável, por causa da chuva que caíu, na noite passada, e do vento que ainda se sente. Está-se bem ao pé da lareira, que costumo acender, para conforto meu e do Piloto. Quando há bom tempo, costumo ir apanhar lenha miúda para acender o lume. E pinhas secas, que ajudam a preparar um bom fogo. Mas, mesmo com este tempo frio, vejo-me obrigado a sair, todavia: Se não o fizer, quem levará Piloto a dar a sua volta costumeira, de manhã, e à tardinha, afim de fazer as suas necessidades, e exercitar um pouco o seu grande e pesado corpo de cão venerável? E até eu preciso de fazer um mínimo de exercício físico! Já há dez anos que vivemos os dois sozinhos, ele e eu. Adoptei-o, resgatando-o do canil municipal, da cidade onde vivi quase a minha vida toda. Um dia, à porta de um dos supermercados dessa cidade, havia um peditório para os animais. Como estava com vontade de arranjar uma companhia canina, que é uma das melhores que um homem sozinho pode arranjar, informei-me junto dos responsáveis pelo peditório, e assim que os meus afazeres me deixaram umas horitas livres, fui lá, com a minha carrinha. Agradou-me, entre muitos, este companheiro de quatro patas. Na altura, era um jovem pastor alemão, a precisar de dono. Tinha sido encontrado abandonado havia pouco tempo. Demo-nos bem logo à primeira. E temos feito muita e excelente companhia um ao outro.
Fui professor durante vários anos, e quando chegou a altura da reforma, há cinco anos atrás, eu, como era - e ainda sou, e serei - solteiro, incondicionalmente, mudei-me da última cidade onde vivia e onde tinha trabalhado nos últimos tempos, para esta aldeia, onde vivo tranquilo, com este amigo de quatro patas.
De vez em quando, a malta mais jovem, como vocês, que vai sabendo, pelos habitantes daqui, que fui professor, aborda-me, e fica um pouco à conversa comigo. Os jovens são esponjas autênticas, sempre desejosos de aprender, de conhecer mais e mais. Fascinam-nos as inúmeras histórias e as experiências pessoais que tenho para lhes contar e partilhar com eles. Ao princípio, alguns têm receio do Piloto. Mas, no fundo, embora ele intimide um pouco, na primeira visita, , os que vêm com boas intenções, e nos respeitam, tornam-se logo  amigos dele também.
Há mesmo uma pequenita, aqui da aldeia, de seis anitos, que adora cá vir, para brincar com este meu cão, sempre que pode. Da primeira vez, há cerca de um ano atrás, ela tinha receio, mas eu ajudei-a a aproximar-se dele, ainda me lembro:
- Não tenhas medo do Piloto, querida! – Disse-lhe eu.- Ele não morde nem os meninos, nem as meninas, como tu, que simpatizam com ele! Anda fazer-lhe festas!
A miúda veio, ainda a olhar para mim, para certificar-se que podia confiar. Chegou-se ao pé do Piloto, comigo, e fez-lhe uma tímida festa na cabeça, dizendo:
- Mimi gosta de ti, Piloto!
Depois, vendo que ele era confiável, continuou durante um bocado, e foi dizendo, olhando-o nos olhos:
-Mimi gosta de ti! Muito! Cão lindo! Mimi amiga do Piloto, sim?
Até dava gosto de ver a cara do Piloto a olhar para ela e depois para mim, de boca aberta, como se estivesse a sorrir, a língua de fora, a semi-cerrar os olhos, e a abanar o rabo! A este cão, só lhe falta a fala! E a partir desse dia, a Mimi passou a vir sempre que pode. Traz sempre com ela um miminho para ele e põe-se a abraçá-lo, a fazer-lhe festas, a dar-lhe beijinhos, a falar com ele...  e este maganão adora a garota! O que é engraçado, é que ele percebe tudo o que ela diz! Até dá gosto ver os dois juntos! Já lhes tirei fotografias, que consegui emoldurar. Ora vejam! Cá estão, sobre este aparador! Não estão o máximo?
Se gosto de jovens? Claro que sim! Convivi uma vida inteira com jovens, tantas turmas de rapaziada! Passei por várias escolas, em todo o País! Deixei recordações, e trouxe comigo recordações também! Mas adoro visitas dos mais pequenitos, como a Mimi, e outras crianças daqui, que sempre que me encontram, com o Piloto, vêm a correr ter connosco! Chamam-me Professor Gil! Fui eu que lhes disse para me tratarem assim, ou, se quisessem, por Sr. Gil! Mas acho que eles preferem ver-me mesmo como professor! Inclusive, quando têm algumas dificuldades com as tarefas escolares, vêm ter comigo, e pedem-me ajuda. E eu ajudo sempre a esclarecer as dúvidas da garotada. Formam uma turminha, todas as tardes, durante a semana, nos períodos escolares. Estão para aqui comigo, uma horita ou duas, depois vão para casa, quando eu vou dar a minha volta com o meu cão. Acompanho-os a casa, a todos, e conversamos sempre, pelo caminho. Os pais já me quiseram remunerar como explicador, mas eu não permito tal! Já lhes fiz entender que faço isso por amizade aos garotos e garotas, como entretenga, e por gosto próprio. Então, passaram a exigir que eu aceitasse dádivas de coisas tais como uns chouriços caseiros, ovos, algum peixe apanhado na ribeira aqui perto, pão feito por eles, cozido em forno de lenha, ou outras coisas do género... tudo uma delícia! E eu, para não lhes ofender a susceptibilidade, aceito. Entretenho-me, muita vez, com as lições que dou aos miúdos, mas também me dedico à bricolagem. E eles também aprendem isso, e gostam de ajudar a montar engenhocas úteis em casa, como muitas das coisas que vocês aqui vêem! E assim, quando precisam, já sabem fazer o mesmo em casa de cada um deles...
Já fui muito louco, quando jovem, e por isso, compreendo a juventude. Já cometi muitos erros e loucuras, tal como muitos deles. Mas é sempre bom ter com quem partilhar experiências de vida e conhecimentos. Eles adoram-me, e respeitam-me. Admiram o companheirismo que existe entre mim e o meu cão. Já fomos os dois um pouco solitários, mas sempre muito unidos. Damo-nos ambos muito bem. Ele sabe quando eu não estou nos meus melhores dias. Dá-me o apoio silencioso que só no seu olhar e no seu comportamento posso advertir. E eu compreendo a sua alma límpida  e simples de cão idoso, que só precisa da minha companhia, do meu carinho e dos meus cuidados, para ser feliz.
Porque é que vivo sozinho com o Piloto? Porque decidi ficar solteiro. Fui um homem apaixonado, que foi duramente desenganado por mais do que uma mulher. A primeira chamava-se Lara, e  era estonteante. Morena, como uma cigana, longa trança negra. Olhos negros de expressão penetrante. Baixinha, magrinha. Hippie! Mas tinha um encanto muito próprio. Apaixonei-me logo, como um louco, por ela. Fui avisado para ter cuidado... Mas deixei-me levar, cego pela paixão. Não quis escutar conselhos de ninguém! Eu  tinha dezoito anos, e ela era mais velha do que eu cerca de oito... Para aquela diaba, fui um breve capricho, nada mais! Essa minha loucura durou um Verão. Eu vivia perto de uma praia. Passei os meses de  Julho e Agosto a louquejar com ela, escondidos, muitas vezes, debaixo da quilha virada de algum barco, rebolando na areia, à noite, e amando-nos como doidos. Corríamos pela praia, de mãos dadas, mas sempre à noite. Ela só vinha à noite ter comigo. Havia um velho barracão, abandonado, numa zona da praia que era pouco frequentada. Ela ia lá ter . Eu esperava ali por ela... Quase nem ia a casa... Os meus pais andavam preocupados comigo. Eu, cego, nem ligava! Quantas noites não voltei eu, mais tarde, depois de ela me ter deixado, a entrar nesse barracão, e não fiquei, ali, a relembrar essa paixão assolapada desse Verão! Sabem aquela canção do José Cid: “A Cabana Junto à Praia”? Pois a minha vida, nessa altura, era parecida com o que diz uma parte da canção. Cheguei a levar a minha guitarra, e tocava  velhas canções que eu conhecia,  e músicas que eu próprio compunha, lembrando-me dessa bandida! Esquecia de vos contar que ainda toco guitarra, e até já ensinei alguns putos daqui a tocar algumas coisitas! Eles também gostam disso à brava! Mas, voltando ao que vos estava a contar: A Lara - Essa diaba! Com ela aprendi o que é ter intimidade com mulheres. Com ela tive a minha primeira vez! Foi o suficiente para fazer estragos na minha vida! Um dia, descobri que ela me enganava, que tinha outro amor: um amante mais ou menos da mesma idade do que ela. Eu nunca o tinha visto, nunca vira os dois juntos, sequer, nem antes de eu andar metido com ela! Ele deve ter estado fora, e  voltou a ter com ela, ou a buscá-la, na única vez que  eu os vi juntos! Ela foi embora, no fim do Verão, com esse sujeito, um hippie, também, de guedelhas compridas e deslavadas, e ar de vagabundo. Descobri então que faziam par, que só estavam de passagem pela cidade. Um louco amor estival! Nada mais! Uma brincadeira, para aquela patifa! Fiquei cego de dôr e de raiva, contra ela, e sobretudo, contra mim mesmo, por me ter deixado enganar assim! Passado algum tempo, cerca de quatro anos, arranjei outra namorada... Chamava-se Celeste - que infelizmente, rimou, para mim, com peste! -  loira, como um sol tropical! Olhos verdes fatais: Uma colega de turma, já no final dos meus estudos universitários.... Quando eu julgava que podíamos ser felizes ambos, e que podia voltar a acreditar no amor, ela foi embora com aquele que se dizia, e que eu julgava mesmo ser, na época, o meu melhor amigo: João Sarmindes!... Ah! Celeste! Que eu julgava, a princípio, tão celestial como um anjo! Era linda, sorridente, e mimosa, como se fosse um anjo mesmo! Mas “as aparências iludem”, como diz o velho rifão popular! E ela enganou-me bem! Parecia que não via nada mais, ninguém mais do que eu! Íamos juntos para toda a parte! Levei-a, inclusive a conhecer os meus pais! Eles adoravam-na! Parecia uma rapariga tão acertadinha! Estávamos quase a voltar para Lisboa, para iniciar outro ano lectivo, quando ela me pregou a pior partida que me podiam, alguma vez, pregar na vida: Eu, ela e o meu amigo João, tínhamos combinado abalar todos três juntos para Lisboa, para a Universidade. Mas ela e ele deixaram-me para trás, nas vésperas da data combinada. Não cumpriram com o combinado. Perdi um amigo! E desenganei-me ainda mais do que da primeira vez!  Cheguei a cortar os pulsos, mas fui salvo a tempo, por uma alma caridosa,  que me socorreu e alertou os meus familiares. A minha mãe ia morrendo de desgosto! Escusado será dizer que perdi esse ano lectivo, entre o problema de ter cortado os pulsos, que teve de ser tratado de urgência e que foi um caso muito delicado, fisicamente falando, e a depressão com que fiquei, também! E essa quase que me mata também! Tive de esperar, para me voltar a matricular, no ano seguinte, na mesma Faculdade, e que me concedessem o re-ingresso. Quando consegui recuperar disso tudo, lá fui, sozinho, para Lisboa, novamente! Eles, de vez em quando, cruzavam comigo, com ar comprometido, mas eu evitava-os ao máximo! Tentaram vir justificar-se, mas como eu tinha o pavio curto, e estava ainda dorido moralmente, de toda essa história, não quis saber mais deles, e mandei-os nunca mais virem ter comigo, nem me falarem sequer! Então, afastaram-se de mim para sempre!  Foi o melhor que fizeram! Eu estava capaz de dar cabo deles se voltassem a meter-se comigo! Daria cabo de ambos! Aí, então, é que eu nunca mais quis saber de raparigas! Algumas ainda me rondaram e tentaram... Mas eu abdiquei! Preferi parecer um urso solitário, do arriscar-me a sofrer mais, por quem não merecia o meu sofrimento! Solteiro, sozinho, tenho vivido razoavelmente: aqui estou ainda, enquanto Deus quiser! Se o meu cão me sobreviver, espero que possa, antes disso, entregá-lo a alguma alma amiga, que cuide dos seus últimos dias... Caso contrário, se eu lhe sobreviver a ele, viverei o que me resta de vida como eu puder.
 Mulheres, meus amigos? Dessas? Nunca mais! Quando me sentia com necessidade física de estar com uma mulher, cheguei a ir a casas de prostitutas! Chegava lá, era atendido decentemente, sempre por alguma garina engraçada, mulheres que sabiam o que tinham a fazer... Não se punham com merdas!  Eram pagas, para aquela hora, e pronto! E tudo sem compromisso! Fora disso, o que penso das mulheres? Pois bem: Há mulheres maravilhosas, sim, verdadeiros exemplos de bondade, de abnegação, de coragem, ou de empreendedorismo... Minha mãe foi uma delas, um santo exemplo, que guardo em meu coração! Algumas mulheres podem ser verdadeiras e grandes amigas nossas! Não lhes retiro os seus méritos!  Havia, até há pouco tempo atrás, uma senhora viúva, aqui na aldeia, que se tornou mesmo uma verdadeira amiga minha, de coração! Uma amizade sem maldade, sem segundas intenções! Como se fosse minha irmã! Cá está a foto dela! Chamava-se Hermínia Vasco! Houve quem lhe tentasse deitar fama de ser minha amante! Mas nunca lhe toquei com um dedo, sequer! Sempre houve entre nós um grande respeito! Um dia, um dos vizinhos, aqui da aldeia, veio ter comigo, e perguntou-me se realmente eu tinha alguma coisa com ela! Conversámos e fiz-lhe ver a realidade. Ele alertou-me que ela estava a ser difamada por minha causa. Eu contei-lhe a verdade. E tudo ficou esclarecido a partir daí: pediram-nos desculpa a ambos, e nem mais se falou no assunto. Amigos, mas amigos fraternos! Se ambos tivéssemos querido, poderíamos ter sido amantes, sim senhor! Poderíamos ter vivido juntos, também, que não teria tido mal nenhum, pois então? Ninguém teria tido nada a ver com isso, e não estaríamos a prejudicar ninguém, sendo ambos sem compromisso! Conversávamos muito. Ela ajudava-me imenso, limpando o que podia da minha casa, trazendo-me, certos dias, comida, quando me sabia doente, metido à força na cama. Eu também a ajudava a ela no que me era possível! Ela até passeava o Piloto, quando eu não podia! Piloto gostava dela a valer! Mas a morte levou-me essa boa amiga, há meses atrás... Um ataque cardíaco fulminante, e fiquei sem a Hermínia! Fiquei bastante desgostoso, algum tempo, e o Piloto, coitado, gemia de meter dó! Parecia que chorava! Quando fui ao funeral dela, o Piloto foi também. Ficou gemendo, deitado ao lado da campa, um monte de tempo, até que lá consegui que voltasse para casa comigo. Esteve sem comer um par de dias. Só bebia água. Até eu perdi o apetite, durante um tempo, mas reagi! Por ele e por mim, e pela memória dessa amiga, que não havia de gostar de me ver assim! Querida Hermínia! Deus a tenha em Seu Eterno Descanso! Que a sua alma generosa e humilde bem o merece! Nunca a esquecerei! Grande mulher, valorosa e leal amiga! Mas aquelas duas, que me traíram e abandonaram, na juventude, para fugirem com outros... dessas, nem ver mais nenhuma é bom! Já vêem, não tenho tido sorte com mulheres! Ah! Mulheres! Como, sendo jovem, fui tolo! Apanhei bebedeiras de cair inerte, por causa delas! Para quê? Ia dando cabo da minha saúde, da minha vida! Até que, um dia, compreendi que o melhor, para mim, desenganado como já estava, era prosseguir sozinho. Entretanto, a vida foi passando, e tive muita gente a quem dar atenção, na minha profissão. Quantas gerações já passaram pela minha vida! Guardo belas recordações de bons  e boas colegas de profissão, de gente capaz e inteligente, de corações limpos. E os outros, pú-los para trás das costas... Também guardo gratas recordações de excelentes alunos e alunas, malta jovem com garra e inteligência, mas também com genuína amizade por mim! Alguns deles, já adultos, sabem agora onde vivo, e já me têm vindo visitar! É grato receber visitas de quem nos guardou no coração, saber que fomos bom exemplo para alguém. Que essas pessoas nos estimam e nos têm amizade. É o lado bom da minha profissão.
 Dizem por aí que sou solitário... Deixem-nos falar! Sou mais feliz assim! O Piloto é um companheiro fiel!  E, ao menos, ele, não finge gostar de mim!
Obrigada pela vossa visita, amigos! Podem voltar quando quiserem! Se trouxerem um miminho para o Piloto, tanto melhor! Para mim, as vossas visitas bastam-me, para ter algumas horas mais animadas! Sobretudo, se trouxerem as vossas guitarras, para treinarmos  e tocarmos juntos alguma coisita!
Vá, Piloto! Anda daí! Vamos! Já não chove, e é de aproveitar agora! Olha, o arco-íris a brilhar, em todo o seu esplendor! Deixem-me lá tirar uma foto e guardar mais essa bela lembrança! Arco-íris! Eterna aliança de Deus com o Seu povo! Sabiam? Eu também sou do povo de Deus! Creio firmemente n’Ele! Deus não se esqueceu de mim! Nem eu d’Ele! Obrigada, Senhor, por cuidares de mim e do Piloto!


FIM


Nely, Março 2017

sexta-feira, 24 de março de 2017

CONTO "ESCOLHA DÍFICIL"

“Apesar de toda a felicidade imensa que nos espreita, sentimo-nos tristes quando partimos, porque deixamos sempre alguém para trás.” – Hervé Villard


ESCOLHA DÍFICIL

Sabina, sentada na cozinha, olha pela janela, pensativamente... é de noite, ainda... quatro horas da manhã... O dia ainda tarda, e ela, com insónia, como em tantas outras noites, levantou-se, cansada de andar às voltas na cama, sem dormir... Na sua frente, sobre a mesa, está a caneca de chá de tília que acabou de preparar, e uma lata de biscoitos dinamarqueses, comprada há dias, num dos vários hipermercados da cidade... Apenas mais um modo de conjurar o sono, que não vem...
Há poucas horas atrás, de tarde, esteve com Graciano, que, mais uma vez, lhe proporcionou umas horas encantadoras de convívio... Um convívio cheio de doçura, de música, de diversão... Aquele homem é um encanto: Belo, inteligente, culto, detentor de uma extrema elegância  e de muito bom gosto, na sua apresentação e no vestuário que usa... Sabina pensa nele, revê mentalmente o momento em que Graciano lhe falou de casamento... Graciano é dono de uma bela fortuna. Solteiro. Lindo!... Nada lhe faltaria, se aceitasse casar com ele! Nada... a não ser, talvez, sexo! Graciano acabou de confessar-lhe que há pouco tempo, ficou impotente!
Sabina adora-o, desde que o conhece... Foi como que um amor à primeira vista, como se eles se conhecessem há milénios e se reencontrassem por fim. Como decoradora de ambientes, de interiores, Sabina Menezes já possui algum renome, em Cascais, onde vive actualmente, e não só. Nessa qualidade, ela foi requisitada por Graciano, para lhe redecorar a casa, uma esplêndida vivenda, nos arredores de Almada. A partir de aí, foi nascendo um são convívio, uma bela amizade... Ao nível das ideias, dos gostos, da cultura, Graciano é a sua alma gémea... Até bem que poderia ser o seu amor platónico! Desde há uns meses que se conheceram, têm conversado sobre tudo um pouco, mas ele nunca se tinha decidido a confessar-lhe esse seu segredo inconfessável! Na sequência de um tratamento a um problema grave de saúde, Graciano ficou assim, há pouco tempo... Que lástima! Ele tem desgosto em já não poder, actualmente, satisfazer plenamente nenhuma mulher... Mas apaixonou-se por Sabina,  que se lhe tornou, a pouco e pouco, irresistível, com  as suas belas curvas sensuais e generosas, os seus cabelos ruivos longos, fartos, e bem cuidados, a sua pele muito branca, quase leitosa, os seus olhos cor de mel, grandes e amendoados, e aquela boca carnuda que, a ele, tanto lhe apetece beijar! Ela tornou-se-lhe mesmo imprescindível, também a nível emocional e de comunhão de ideias e conhecimentos. Graciano ama-a tanto, que não se importou, por fim, de lhe contar o seu comprometedor segredo, pois vê nela uma boa confidente, e também uma amiga compreensiva. Graciano já percebeu que Sabina não é o género de pessoa que conte a outrem aquilo sobre o que lhe pedem sigilo, nem outras confidências ou conversas: ela mesma é o tipo de pessoa tão reservada, que nada conta de sua própria vida a ninguém! E para poder pedi-la em casamento, ele tinha de ser sincero! Graciano achou que Sabina não se importaria com esse pormenor. Que, certamente, hão-de achar para ambos uma boa solução, caso ela aceite casar-se com ele. Sendo um homem de carácter altruísta, não se importa de não poder ser satisfeito sexualmente ele próprio... Propõe a si mesmo dar-lhe a ela toda a satisfação possível! Falaram sobre esse ponto, e ela sabe que, se ele lho promete, fará tudo por cumprir... Mas a jovem mulher tem sérias dúvidas sobre essa questão delicada.
Sabina está agora perante um grande dilema... Pediu uns dias para pensar na proposta de Graciano... Essas decisões não se tomam assim, de repente... Para ela, Graciano representa o amigo e companheiro ideal, que a incentiva  a cultivar-se, que a rodeia de mil cuidados e atenções, e se propõe mimá-la de todas as formas possíveis... Mas saber que, possivelmente, não vai poder fazer nada de jeito, na cama, com ele, para Sabina, é  algo que a deixa decepcionada... Pensava que um pedido de casamento pudesse vir, da parte dele, mas não essa sua confissão de impotência... E agora, o que fazer? Tentar levá-lo, na mesma, para a cama? Tentar descobrir se ela consegue fazê-lo sentir prazer, mesmo assim? Que situação injusta! Logo a acontecer com Graciano, que é a generosidade em pessoa!Ele deve estar a sofrer no seu amor próprio, na sua dignidade de homem, certamente!- Pensa Sabina. Ao fim ao cabo, adora-o. E pensa que, caso ele a satisfizesse, ela quereria retribuir-lhe, dar-lhe, a ele, o prazer devido e merecido, também. Será que ele não tem mesmo cura?
Todas essas interrogações a fazem ficar sem sono... Caramba!
Mas não é só o que se passa com Graciano que a aflige: Por outro lado, existe também aquele seu caso já antigo com Jerónimo, aquele “affair  sexual” que mantêm, às escondidas, com ele, já há alguns anos... Apenas sexo: Encontros decididos por ambos, certos, com periodicidade semanal... Sexo louco e apaixonado, por umas horas, que os deixa, a ambos, satisfeitos e esgotados... Depois, cada um vai à sua vida, como de costume... Sem outros compromissos... Jerónimo também é um belo homem, de tipo atlético, viril... E mostra-se louco por ela... mas ainda não lhe propôs, nunca, casamento: gosta do caso de ambos assim, como está... Já abordaram o assunto muitas vezes. Ele sempre foi categórico, mostrando-se irredutível sobre essa questão. Até que Sabina, por fim, desistiu de o fazer mudar de ideias... Jerónimo aprecia a sua própria liberdade, por cima de todo o resto...  Todas as semanas, ou quase todas, eles encontram-se, no meio de uma agenda cheia, de compromissos de trabalho e de negócios, de parte a parte...
Sendo Sabina solteira, também, e de trinta e seis anos, é livre, independente. E gosta, também ela, da sua própria liberdade... Na actualidade, não tem nenhuma amiga confidente: cada uma das suas amigas de antes foi à sua vida, e já nem se encontram, sequer... Se não fosse Jerónimo, e, há pouco tempo, Graciano, ela quase não teria, sequer, um pouco de vida social... As horas passadas com Jerónimo têm compensado, parcialmente, as suas carências afectivas e sexuais. Sabina tem adorado cada  momento íntimo com ele. Ele tem sabido dar-lhe prazer de forma única... E ela adora isso! Não pode já passar sem esses doces e luxuriosos momentos de entrega física total... Ele não será, decerto, tão rico como Graciano... Mas tem o que, a Graciano, infelizmente, agora, lhe falta... Ela quer, por um lado, tudo aquilo que Graciano lhe pode proporcionar, mais a sua glamorosa companhia, tudo aquilo que ele é, e o que faz com ela... Mas, para obter tudo isso através de um casamento, terá de renunciar a essa sua relação clandestina com Jerónimo... e também lhe custa ter de abrir mão da satisfação física que ainda recebe dele, do carinho que os une...
O ideal, era manter-se ainda assim, por algum tempo... E usufruir dos dois! Mas não pode ser! A sua integridade moral não lho permite! Ambos na casa dos quarenta anos, solteiros, sem compromisso, eles são belos homens, cada um no seu género: Graciano Meirinhos, loiro, de olhos esverdeados... O típico gentleman nórdico, encantador, cheio de carisma... herdeiro aristocrático, tão rico, que nem precisa de trabalhar... Jerónimo Palmeira, de olhos escuros, cabelo negro, estilo latino... Corrector de câmbios e executivo de negócios, muito bem sucedido, ligado à Bolsa de Valores Europeia... Um ás a fazer dinheiro! Um vulcão na cama!
Graciano desconhece que Sabina tem um amante... Jerónimo desconhece ainda que Sabina acompanha com Graciano... Ela tem conseguido, desde há meses, e também nestas últimas semanas, manter cada um deles desconhecido e ignorado do outro, no tocante à sua relação com ambos... Mas até quando poderá permanecer nessa dualidade? Alguma vez terá de se decidir... Tem medo que ambos descubram... Tem receio que nem um, nem outro, queiram continuar o seu respectivo relacionamento com ela, caso descubram o seu duplo envolvimento... Sente-se dividida! E receia ficar sem nenhum deles... Vai ter, por força, de escolher um deles e deixar para trás o outro, por muito que lhe custe...
 Passados alguns dias...
- Preciso de uma resposta da tua parte, Sabina! Ainda que não te queira pressionar, já não aguento a incerteza, querida! Já te decidiste?
- Já! Aceito a tua proposta, Graciano!
-Ah! Finalmente, querida! Fico feliz de ouvir isso! Tens mesmo a certeza?
- Tenho, meu querido!
Isso tudo é dito com intercâmbio de olhares doces entre ambos, e em tom carinhoso, de ambas as partes.
Estão na sala de estar da casa espaçosa e luxuosa de Graciano, o qual convidou Sabina mais uma vez, para ali lanchar com ele, com o pretexto de saber finalmente a resposta da jovem mulher, por quem é absolutamente louco. Sentados lado a lado, no grande sofá de assento forrado a seda adamascada cor de mostarda, naquele salão de ambiente clássico, e luxuoso, que ela decorou há pouco tempo, a seu gosto, ele toma as mãos de Sabina entre as suas, erguendo-as, e depositando nelas vários beijos.
- Verás que não te vais arrepender, minha adorada! Meu anjo! Vou fazer tudo o que esteja ao meu alcance para tornar-te feliz! Vais ver!
-Então e a questão da nossa intimidade física, como vamos resolvê-la, amor?
- Não te preocupes com isso, minha linda Sabina! Há-de resolver-se bem!
-E que tal, se procurasses um sexólogo? Talvez indo consultar médicos diferentes, obterias outros pareceres?... Quem sabe isso terá alguma solução viável, e esse médico teu não a conheça... Ao fim ao cabo, ainda és um homem novo, há mais esperança do que se já tivesses passado dos cinquenta ou sessenta anos...
- Pode ser! Uma vez que me encorajas a isso, fá-lo-ei, querida! Obrigada pelo apoio! Sinceramente! Em todo o caso, haverá sempre uma solução, até mesmo para termos filhos! Queres ter filhos, Sabina?
-Claro que quero!... Isto é, se ainda puder tê-los... Sabes que a idade avança, e isso é um factor de acréscimo de dificuldade, para qualquer mulher, a partir dos trinta anos em diante!
-Sei, pois! Mas, se não pudermos, por essa razão da tua parte, ou por impotência minha,  adoptamos um!
-Está bem! És muito prático, meu querido Graciano!
-Claro que sou! E o caso é que tenho meios para sê-lo! Então, querida, podemos dar os passos necessários para tratar do nosso casamento?
-Podemos!
- E posso beijar-te, finalmente?
- Claro que sim!
Graciano chega-se mais junto a Sabina, e envolvendo-a em seus braços, pela primeira vez, abraça-a e beija-a nos lábios, longamente. Nesse beijo, há ternura, há uma doçura inexcedível, da parte de Graciano. Sabina corresponde-lhe com muita ternura também. Ela está a começar a apaixonar-se por Graciano.
Depois, olhando-a com meiguice, ele diz-lhe:
-Espera aqui um pouco, Sabinita! Tenho uma surpresa, um presente para ti, meu amorzinho!
Graciano sai do sofá, levantando-se e dirigindo-se ao seu escritório que é contíguo àquela sala, e a que se acede por uma porta muito bem disfarçada, na parede forrada a tecido de motivos grandes de medalhões, nas mesmas tonalidades que o mobiliário ali disposto.
Graciano abre essa porta, entra no escritório de que Sabina conhece cada pormenor, tendo sido ela quem o decorou, como todo o resto da bela e espaçosa vivenda. Sabina ouve-o remexer em objectos, ouve os estalidos metalizados do código do cofre ali instalado. De novo, os mesmos estalidos, e, passados segundos, Graciano reaparece à porta do escritório, com uma caixa de veludo azul escuro nas mãos. Ele fecha a porta, atrás de si, e dirige-se com ar de mistério a Sabina. Finalmente, de caixa nas mãos, senta-se de novo a seu lado.
Sabina olha-o, na expectaviva. Sabe, por intuição, que ali está uma jóia. Mas o quê?
Graciano satisfaz-lhe a curiosidade de imediato, sem nada dizer, e abrindo o delicado invólucro. Dentro da caixa, forrada interiormente de cetim azul escuro, expõe-se um lindo colar de pérolas, de uma só volta, mas de muitas pequenas esferas brancas, de brilho alvo.
-Então, meu amor? Gostas da surpresa?- Pergunta Graciano,  sondando-lhe a expressão do rosto. Sabina, apanhada de surpresa, gagueja, coisa rara nela:
-Eu... Estou... s...sem... p...pal... avras! Não... não... esta...va à espera d...disto!
Lágrimas de emoção saltam dos olhos emocionados de Sabina.
-Então, querida? Que foi? Acalma-te lá!
- Graciano... como sabias... que eu... gosto... de... pérolas?
Entretanto, Graciano tira o colar do seu delicado escrínio, e passa-lho ao pescoço. E responde:
- Calculei... Já te vou conhecendo, querida! Já vou sabendo das tuas convicções, dos teus gostos, da tua personalidade! E a ti, o que te fica bem, são as pérolas, Sabinita! Vem cá, querida! Vem ao espelho, a ver o efeito que elas produzem em ti!- Graciano diz-lhe isso, tomando-lhe as mãos, e fazendo-a levantar do sofá, delicadamente.
Sabina obedece e deixa-se conduzir a um lindo espelho clássico de moldura dourada que existe numa das paredes dessa divisão. As mãos de Graciano, com delicadeza, a tocam nos braços e a conduzem a ver a sua imagem reflectida no espelho. Sabina gosta do que vê.
-Sabes o que dizia a Coco Chanel, acerca do uso de jóias, pelas mulheres, meu amor?- Pergunta Graciano.
- Sei, querido! Ela dizia que a finalidade do uso de jóias, na toilette feminina, não era para que as mulheres parecessem ricas, ou exibissem riqueza, mas sim para que tivessem com elas um ar mais sofisticado!
-Exactamente!
-E por isso, contam, numa das suas biografias, que a Mademoiselle até lançou a moda das jóias falsas, de pechisbeque, para que todas as mulheres tivessem acesso a adornos que estivessem ao alcance dos seus meios financeiros...
- Mas estas não são pechisbeque, fofa! São verdadeiras! Tenho meios para te oferecer jóias autênticas e tudo o que seja preciso, mas de marca genuína! E tenho-te ainda a dizer: Bravo!Também leste essa biografia! Vejo que temos mais e mais afinidades a nível das ideias, e da nossa cultura, em comum! És mesmo a mulher ideal para mim!
-Partilhamos os mesmos pontos de vista e os mesmos conhecimentos! Que bom! Comunhão perfeita de ideias!
-E cada vez estou mais apaixonado por ti!
- E fazes com que eu também me sinta assim, Graciano!
Um novo abraço, e um beijo prolongado os faz expressar o amor nascente entre ambos.

Dias depois, no encontro semanal com Jerónimo, e após terem feito amor como de costume, eles conversam:
- Encontramo-nos na próxima sexta-feira?
- Não vai dar...
- Ora essa! Porquê?
- Porque o nosso caso tem de ter um fim... E tem de ser já!
- Que conversa é essa, agora? A que vem isso? O que te deu, Sabi? Enlouqueceste?
- Vou casar!- Declara sem rodeios Sabina.
- Vais... o... quê?- Exclama, com ar incrédulo, Jerónimo, que desata a tossir, porque se engasgou com o fumo do cigarro que estava a inalar, nesse momento mesmo, e foi completamente apanhado de surpresa.
- Vou casar!- Repete ela, muito calma e naturalmente, sem alterar nada no seu tom de voz, nem nos seus modos.
- Como assim, casar? Com quem?
- É muito simples: Há meses, conheci pessoalmente o Graciano Meirinhos. Solicitou-me que redecorasse a sua vivenda. Entretanto, fizemos amizade, e ele já me convidou várias vezes para festas que tem dado nessa sua casa. Tenho aceitado esses convites. Convivemos muito. Chegámos a esta conclusão: Ele gosta de mim, e eu dele. Ele propôs-me casamento há uns dias atrás e eu aceitei!
- M...!Então e eu?
- Tu nunca quiseste modificar a nossa relação!
- Mas já te dei mil provas de gostar de ti!
- Mas não me deste a que eu mais esperava: querer casar comigo...
- Então, pretendes mesmo casar com ele?... E a nossa relação, como fica?
- Muito possivelmente, acaba aqui e agora, este nosso costume de encontros secretos... Isto não pode continuar... Será melhor deixarmos de nos encontrar a sós...
- Tens a certeza? Olha que, se acabarmos, eu já não vou voltar atrás...
-Paciência! Agora, a minha decisão está tomada, e já dei a minha resposta ao Graciano! Também não penso voltar atrás! Ele ficou muito feliz! E eu também estou!
- E eu que me f...! Mas que bem!E, já agora, responde-me uma pergunta... Tenho todo o direito de saber: já foste para a cama com ele?
- Não, não fui! Não te traí, se é isso que receavas! Até há pouco, tem sido uma relação de amizade, a que tenho desenvolvido com o Graciano... Mas agora, descobrimos que estamos apaixonados os dois!
- Bom, pelo menos isso! Ainda tens bom fundo, Sabi, como sempre achei que tinhas! Mas dói ouvir uma notícia destas! Caramba, se dói! Apanhaste-me completamente de surpresa! Não estou minimamente preparado para ficar sem ti!
- Calculo que não, meu amor! Sei bem que custa! Eu mesma até perdi o sono com esta história! Não sabia o que fazer, nem como tratar desse assunto... Jerónimo, tu bem sabes o quanto eu ainda gosto de ti! Mas, infelizmente, não quiseste, até à data, assegurar este amor com uma união legítima...
-Mas tu sempre aceitaste as minhas condições... Julgava que não te importavas, já!
- Não tinha mais remédio! Preferia isso do que perder-te...
 - Mas, agora, já não te importas de ficar sem mim, não é?
- Acredita que me custa imenso ter de deixar de me encontrar contigo... Mas, por muito que me doa, tive de escolher! Não iria conseguir continuar assim! A sentir-me dividida! E a fazer-te mal a ti, e a ele! Não tenho esse direito! Não me sentiria bem traindo-te a ti com o Graciano, mas também não me sentiria bem, traindo-o, a ele, contigo! Podemos, no entanto, continuar sendo amigos, se quiseres...
- Obrigada pela esmola, pá! E, já agora, sê feliz! Espero que ele te satisfaça tanto ou mais do que eu!- Exclama Jerónimo, frustrado.
-Veremos! Mas, não é só a parte do relacionamento físico que conta! Ele e eu temos muitas afinidades! Jerónimo, tenta compreender o meu lado! Tenta pôr-te um pouco no meu lugar...
- A culpa é toda minha, bem sei! Agora, vou perder-te! Tudo isso, por causa do meu egocentrismo, do meu egoísmo! – Exclama de novo Jerónimo, virando-se de barriga para baixo, de punhos cerrados, dando socos na cama. -Bem vejo, agora, o quanto errei! Mas agora, é demasiado tarde! – Depois, mais calmo, olha para Sabina e pergunta, em tom mais ameno:- Então, é um adeus, que estamos a dizer um ao outro, sendo assim?...
- É sim, Jerónimo!
-Por favor, Sabi, deixa-me amar-te uma última vez!
-Está bem, querido! É um presente de despedida! Perdoa-me! Não posso continuar assim!
- Entendo! Tens razão! Vou ter muitas saudades tuas!
- E eu também! Nunca te vou esquecer, Jerónimo!- Diz Sabina, de lágrimas nos olhos.
-Nem eu a ti, Sabi! Vem cá, querida!
Recomeçam a amar-se, com a consciência de ser a última vez que o fazem...
Uma hora depois, ao sair daquele lugar, por última vez, cada qual vai para sua própria casa. Sabina telefona a Graciano e ele vem buscá-la, algumas horas mais tarde, para irem jantar juntos. Na sua mente, há este pensamento: já que ela teve de perder um amor, por ter de enveredar por outro caminho, quanto mais depressa o conseguir esquecer e substituir, melhor será! Apostada em levar a cabo o seu plano de restabelecer a plena sexualidade do seu  actual noivo, Sabina começa, desde logo, a utilizar todos os meios de sedução física ao seu alcance. Quem sabe se ele, seduzido, não logra entusiasmar-se e conseguem fazer amor os dois, com sucesso?

Passaram dois meses sobre o sucedido. De casamento marcado com Graciano, e quase a cumprir-se, Sabina entregou-se-lhe de corpo e alma, tornou-se-lhe fiel, e nunca mais se encontrou com Jerónimo. De pleno acordo com o seu noivo, decidiram ambos que ela continuará a ser decoradora de interiores, como antes. Graciano apoia, plenamente, essa sua decisão, de se manter activa. Os amigos e conhecidos de Graciano já andam a solicitar-lhe, também eles, que a bela e talentosa decoradora lhes trate da remodelação das suas habitações. O que lhe concede, a ela, bastante projecção profissional e social, e lhe garante uma ocupação útil,  e satisfatória. E já não tem mãos a medir para o trabalho que lhe surge. Mas ela adora a sua profissão! Por seu lado, Jerónimo, sozinho, remói os remorsos de ter perdido, por seu único e exclusivo comodismo, a sua bela amante... Vai levar algum tempo, certamente, até encontrar quem a possa plenamente substituir... Se alguma vez o conseguir!
Graciano, felizmente para ele e para Sabina,  descobriu, ao ter intimidade física com ela, que a sua impotência, afinal, tinha cura, pois conseguiu, não só satisfazer a sua amada, mas também ele obteve já o prazer desejado. Está feliz.Vão poder amar-se plenamente, tentar ter os filhos que ambos desejam... e ser felizes juntos, em todos os aspectos. Para Sabina, foi difícil, e até mesmo penoso, decidir entre os seus dois apaixonados, e renunciar a Jerónimo. Mas, finalmente, está feliz com a escolha que fez.


FIM




Nely, Março 2017

segunda-feira, 6 de março de 2017

SONHOS TORNADOS REAIS


Conto Romântico- do meu livro de contos "Amor e Aventura":

SONHOS TORNADOS REAIS

Era um Sábado de manhã. Uma manhã de Primavera soalheira. Quase na hora do almoço. Nesse dia, Irene e a mãe, Eulália, haviam decidido, entre as duas, não abrir a loja de florista da família. Era uma pequena excepção, no quotidiano delas. Estavam a precisar de uma folga um pouco maior, para poderem ir às compras cedo,  e depois, fazerem o almoço entre as duas, também. Mãe e filha tinham uma belíssima relação. Eulália tinha cinquenta e um anos, e Irene acabava de cumprir vinte e cinco.
Ao chegarem a casa, minutos antes, tinham-se deparado com uma visita que, nos últimos tempos, vinha sendo cada vez mais frequente: um colega de seu pai. Mickael Lacerda trabalhava na mesma empresa do que Armando Miranda, embora este fosse cerca de vinte anos mais velho do que Mickael. Davam-se ambos bastante bem, e haviam mesmo feito amizade. Por isso, Mickael frequentava, desde havia algum tempo, e de modo já bastante assíduo, a casa do colega Armando Miranda.
Mas, naquele preciso momento, Mickael estava já de saída. Aproximou-se de Irene, sorrindo, a despedir-se:
-Até logo, Irene!
-Até logo, Mickael!- Respondeu Irene, a sorrir também . Ela simpatizara bastante com ele, desde a primeira visita que ele havia feito ali, quando Armando apresentara o rapaz à esposa e à filha. Irene já havia notado, além disso, que ele também simpatizara com ela, desde a primeiravez em que se haviam encontrado frente a frente...
Poucos instantes antes, ficara combinado entre Mickael e Armando que o rapaz voltaria à noite, para jantar com eles. O pai não dissera, ainda, todavia, diante de Irene, o porquê. Como já não era a primeira vez que ele ali era, para almoçar, ou jantar, convidado, Irene também não estranhou saber que o voltaria a ver, daí a umas escassas horas.
Na verdade, Mickael, que, tanto como Armando, não trabalhava ao fim de semana, fora ali para ter uma conversa franca e sincera com o amigo e colega, afim de expôr os seus sentimentos para com a filha de Armando. Mickael gostava bastante de Irene, e queria sondar o terreno em relação à possibilidade  de namorar e ter uma relação séria e duradoira com a jovem. Para isso, abrira-se com o pai dela, em primeiro lugar. Mas Armando, cuidadoso, não quis dizer nada de imediato, a esse respeito, diante da filha. Durante a conversa tida entre ambos, compreendera o amigo, aprovara as suas boas intenções, e aconselhara-o a sondar, directamente, a própria Irene,  para saber qual a reacção dela. Armando conhecia suficientemente Mickael, para perceber que o rapaz tinha boas intenções e respeitaria a sua filha e a família em si. Pois era uma pessoa com carácter, respeitador, trabalhador e honesto. Já não se encontravam muitas pessoas como ele, por entre as camadas mais jovens. Armando aproveitou um momento em que a filha  entrara em seu próprio quarto, para fazer pequenos gestos expressivos e insinuantes a respeito de Mickael, na direcção da esposa. Esta percebeu logo, com poucas palavras, ditas em voz bastante baixa, de que se tratava, e concordou com um aceno de cabeça.
Irene, por seu lado, ficara, também, a pensar em Mickael.  Ele era um homem belo, ainda jovem,  muito atraente e simpático: Moreno, de cabelos pretos curtos e ondulados, olhos castanhos, feições agradáveis, estatura média, bem proporcionado. Sempre bem vestido, ainda que com um estilo jovem e descontraído. Tinha uma presença marcante. Mickael, à saída, ao despedir-se dela, havia pouco, tocara discretamente com uma das mãos num dos braços dela, numa evidente carícia furtiva. Ela notara claramente, no olhar dele, que o rapaz gostava dela. Havia, agora, entre ambos, uma atracção crescente.   Ela lembrava-se de que, dia antes, ele ali tinha estado, e dirigira-lhe incessantes olhares doces. E há pouco, também. Isso agradara imenso à rapariga, que compreendera a mensagem muda, e esperava, agora, da parte dele, atitudes um pouco mais expansivas, mas talvez tivesse que dar-lhe tempo... Talvez ele fosse um bocado tímido... Ou se sentisse ainda pouco à vontade com ela...
Que sabia Irene a respeito dele? Tudo quanto era possível saber: Que ele tinha trinta e cinco anos – dez a mais do que ela, facto com que ela não se importava nada.  Que era solteiro. Um ponto a favor do que Irene esperava agora dele. Não se lhe conhecia nenhuma namorada actualmente. Tanto melhor, pois significava que estava disponível para uma possível relação entre eles.Trabalhava na mesma empresa que seu pai. Ela tinha, assim, acesso a informação mais directa a seu respeito. Era filho de famílias conhecidas e consideradas como “gente capaz”. Então, era, tanto quanto possível,  fácil de conhecer os seus antecedentes. Sabia também que o pai o considerava como um homem responsável, trabalhador, e excelente colega. Uma simpatia de pessoa! O pai também afirmava, sempre que dele se falava,  que Mickael era uma pessoa de carácter, e sincero. Ela também confirmara isso, a pouco e pouco. Então, estava presentemente na posse de toda essa informação, a respeito daquele que era, agora, o alvo das suas expectativas de rapariga solteira, pretendendo um namorado digno de ser considerado “em condições” para casar.
Irene não costumava intrometer-se muito nas conversas, quando ele ali aparecia, e que ficavam a conviver, ele, ela,  e seus pais. Até porque Irene também tinha as suas próprias amizades, por entre colegas dos tempos de escola, e de universidade, para além de alguns amigos e amigas de infância. Isso fazia com que, fora do seu horário de trabalho, também saísse bastante, ainda, com algumas dessas suas amizades. No entanto, ela simpatizara já bastante com Mickael, não sabendo até à data, ao certo, se devia esperar dele que a visse como uma amiga, apenas, ou algo mais... Mas não podia negar que o sorriso dele, o olhar franco e directo, as suas maneiras, para com toda a família, agradavam-lhe bastante. E não desdenharia dele se, daí em diante, Mickael lhe pedisse para serem namorados... Porém, agora, tinha mesmo a certeza que ele tinha algo mais a transmitir-lhe. Só perguntava a si própria quando é que ele se decidiria a abordá-la acerca disso...
Foi então que, à mesa, Armando, virando-se para a filha, disse de modo directo e explícito:
- Convidei o Mickael, para vir jantar connosco, logo à noite. Irene, vê se consegues não te atrasar! Sei que ele engraça bastante contigo! Ficávamos mal vistos, se não estivesses cá a horas, para jantarmos todos juntos!
- Claro que não me vou atrasar, pai! Eu também engraço com ele, se queres saber! Vou sair um pouco esta tarde, porque tenho uma saída já combinada com a Marta e a Sarita. Mas não vai ser muito demorada! Apenas um pequeno convívio! Cerca de uma ou duas horas, nada mais!
- E além disso, eu também vou precisar de ti, para ajudar  a preparar o jantar!- Acrescentou a mãe.
-Claro que sim, mãe! Podes contar comigo!
A tarde passou rapidamente.  Depois de regressar a casa, Irene, conforme prometera,  ajudou a mãe a elaborar uma parte do jantar, e a pôr a mesa.
Eulália  aproveitou, então, que estavam as duas sós na cozinha, já que Armando estava no quintal a fazer grelhados, e Mickael ainda não chegara. Falou com a filha, a respeito do rapaz:
- Não me tem escapado o modo como o Mickael olha para ti, Irene... Cá por mim, ele está apaixonado! Não achas?
-Talvez! Eu também já reparei! Até o pai se apercebeu! Mas, se ele gosta realmente de mim, não deveria manifestar-se, dizer-me alguma coisa?
- Pois sim! Pode ser que ainda diga!
- Não achas muita a diferença entre as nossas idades, mãe? Dez anos...
- Não! Que ideia!
- Eu, pessoalmente, não me importo nada com isso! Mas, e tu e o pai?
- Nós? Não! Com trinta e cinco anos, ele ainda é um jovem! Ainda para mais, sendo tão bom moço, solteiro, trabalhador, responsável... E já tem maturidade! Não é um criançolas, nem um bandalho qualquer! É um excelente partido! Queres mais? Ele gosta mesmo  de ti... Nota-se-lhe na cara... Gostas dele, Irene?
-Bem... a dizer verdade... sim! – Admitiu a rapariga, ruborizada.
-Tens vinte e cinco anos, és uma jovem! Mas, também já tens idade mais que suficiente para teres um namorado a sério, e até mesmo para casar!
-Casar? Eu? Tão cedo?
-Qual é o espanto? Eu casei mais nova do que tu!- Replicou a mãe, olhando-a nos olhos, e parando no meio da cozinha, com alguns pratos nas mãos. – E hoje, vocês, moças actuais, com essas idades, sois muito mais novas, e ainda com o futuro pela frente! Muita coisa mudou, desde a minha juventude!
-Está bem, mãe! Tens razão! Vou pensar nisso!
Dito isto, Eulália saiu da cozinha para a casa de jantar, com algumas loiças para pôr na mesa. Escassos minutos depois, voltou para a cozinha. Irene acabava de extrair do frigorífico uma grande tigela de salada de verduras, e colocava lá a sobremesa acabada de preparar, a qual necessitava de ficar um pouco ao fresco, até que chegasse o momento de a servir, para que ficasse no ponto desejado. O pai, no quintal da casa térrea, de luzes acesas, vigiava ainda os grelhados  no barbecue.
Eulália voltou à carga:
- Irene: vou-te ser franca! O teu pai falou comigo, esta tarde, enquanto saiste. A razão do Mickael ter vindo cá vê-lo, esta manhã, diz-te mesmo respeito.
- Como assim?
- Ele veio abrir o seu coração perante o teu pai e quis saber se o teu pai concordava  que ele te pedisse para namorarem...
- Ai sim? E o pai, o que lhe respondeu?- Perguntou Irene, ruborizando-se de novo.
- O teu pai disse-lhe que estava de acordo, mas que era contigo que ele devia falar, uma vez que tu és maior de idade, e que cabe a ti decidires directamente esses assuntos que te dizem respeito. Disse-lhe que falasse contigo, para saber se tu também gostas dele...
- E por isso, vem cá jantar? Para falar comigo? Por isso estavas tu própria  a falar-me agora mesmo dele! Estavas a sondar-me, mãe! Confessa!
- Sim! Estava! Por isso mesmo!
-Bom! Ainda bem! Agora, já sabes que também gosto dele... Até que enfim! Tentarei entender-me com ele, sendo assim... Apanhou-me um bocado de surpresa, de início, com as suas atitudes, os seus olhares... Só o estava a ver como um amigo, há uns tempos atrás... Mas as coisas evoluíram entre nós, ao que me foi dado perceber... se agora, ele quer mesmo namorar... a coisa muda de figura...
- Pois muda, filha! Gostas mesmo dele? Tens a certeza?
- Gosto! Claro que sim! Não estou a brincar, nem penso enganá-lo, ou fazer-lhe perder tempo! Espero que ele também não, no que a mim me toca...
- Estás, então, a pensar em aceitar namorar com ele?
-Com certeza, mãe!
A campainha da porta de entrada tocou, nesse mesmo instante, interrompendo a conversa. Irene tirou o avental de fugida, largou tudo, e foi a correr abrir a porta. Mickael, sorrindo, cumprimentou-a com dois beijos no rosto, um deles mesmo ao pé da boca. Irene ficou com a certeza absoluta de que ele tinha vontade de lhe dar outro tipo de beijos... Mickael entregou-lhe, de imediato, um presente muito bem embrulhado, que se revelou ser uma caixa dos melhores chocolates belgas, os seus preferidos: frutos do mar. Ela agradeceu a sorrir, mas ruborizada:
- Obrigada, Mickael! Como sabias que adoro esses chocolates?
- Foi um passarinho que me contou... – Disse o rapaz, com um ar maroto e ao mesmo tempo de mistério.
- Um passarinho, ou um passarão? Talvez que esse passarinho, teu cúmplice, tenha nome... E até julgo que sei de quem se trata: Armando Miranda...- Disse ela, em tom de brincadeira, olhando-o a sorrir.
- Pois foi! – Riu-se Mickael, por sua vez. -Apanhaste-me, Irene! Eu tinha que saber algo acerca das tuas preferências pessoais, para te conseguir trazer um presente ao teu gosto... Então, como o teu pai me convidou, eu perguntei-lhe o que achava que poderia oferecer-te...
-Está certo! Já vi que sabes como agradar a uma rapariga!
- Flores não eram supostas, pois tu já és florista... Chocolates eram, portanto, o presente certo!
- Claro! Tens toda a razão!- Disse a rapariga a sorrir ainda.
Satisfeita, por ver que Mickael fora sincero, e que mostrava preocupação em ser agradável para com ela, Irene ficou ainda mais predisposta a aceitar o namoro com ele. Mickael, por sua vez, ao ver a boa receptividade  de que estava a ser alvo, da parte de Irene, sentia-se agora mais confiante, no tocante à proposta de namoro que lhe iria tentar apresentar nessa mesma noite.
Entretanto,  cada um dos detalhes do que ia sucedendo entre ambos, do que lhe demonstravam as atitudes dele,  no momento presente, dava  a Irene mais vontade de o ter como namorado. Não quisera dizer nada a ninguém, sobre os sonhos que vinha tendo, frequentemente, com Mickael, e em que ele a abraçava e beijava. E agora, os sonhos recentes estavam a pouco tempo, certamente, de se realizarem... Ainda na noite anterior, tinha sonhado com ele! Sonhos doces e românticos que ela ansiava que acontecessem realmente!
O jantar decorreu animado. Depois de, por fim, todos apreciarem devidamente a sobremesa deliciosa, que a própria Irene havia confeccionado, Mickael julgou então propício o momento, para pedir licença, sair, e levar Irene com ele, por um bocado. Achara que essa era a altura ideal de darem ambos um pequeno passeio a sós, ideia com que tanto ela como os pais concordaram. Estava na hora de verificar, por fim, se ele e Irene se iriam mesmo entender... Ao fim e ao cabo, ela era maior de idade, e não iria suceder nada entre os dois, que ela não desejasse. Mickael queria respeitar Irene. Até porque pressentia, agora, que ela também queria que ambos fossem namorados... Os olhares doces e envergonhados dela para ele, os seus sorrisos... tudo, nela, dizia a Mickael que aquela rapariga gostava mesmo dele! E tinham ambos idade e maturidade suficiente para saberem estar a sós, sem interferências, nem preocupação de ninguém.
Então, uma vez a sós, na rua, e a andarem devagar, Mickael decidiu-se:
- Irene, sabes certamente o motivo pelo qual vim jantar hoje convosco, não é verdade?
- Claro que sim, Mickael! Sei que me queres pedir para namorarmos...
-Efectivamente! Só me atrevi a falar com o teu pai, a esse respeito, hoje de manhã, porque notei, na tua maneira de lidar comigo, que não te sou indiferente... Ou estarei enganado?- Perguntou ele, olhando-a nos olhos, um tanto ansioso.
-Não estás enganado, não! – Confessou Irene, mantendo o olhar, mas ficando um tanto envergonhada, e ruborizando-se de novo. Ela nunca tinha tido um namorado a sério, apenas pequenos namoricos sem importância, uns anos atrás... Com Mickael, as coisas iriam, decerto, ser bem diferentes, sérias mesmo. Dali, a rapariga, esperava, por conseguinte, o desenlace de uma proposta de noivado, e inclusive, de um casamento. Tinha muitas expectativas a esse respeito. Foi isso mesmo que ela lhe explicou, de um modo um tanto tímido, a princípio, mas sincero. Ele escutou-a atentamente, e concluiu, então:
-Isso significa que aceitas que namoremos?
- Sim! Aceito, perfeitamente! Digamos que eu até estava à espera que tomasses uma atitude, conforme eu disse há bocado à minha mãe!
- Pois, se querias ver uma atitude da minha parte, aqui a tens! Juro-te que não te arrependerás, Irene! Vou tentar ser o melhor namorado, o melhor noivo possível para ti!
- E eu vou fazer tudo, também, para corresponder às tuas próprias expectativas a meu respeito, Mickael! Só espero que também o possas reconhecer, e que o nosso namoro seja uma benção para nós ambos!
Mickael apanhou a mão dela, prendendo-a com a sua, e levou-a à boca, beijando-lhe as costas da mão, enquanto paravam ambos no meio da rua, e ela sorria, embevecida com tal gesto romântico.
-Irene, posso dar-te um beijo? Não sabes a vontade que tenho de te beijar, querida!
- Podes, sim, Mickael! Eu também desejo isso!- Concedeu Irene, sorrindo e corando,  estando, agora, também ela, desejosa de que Mickael a beijasse.
Então, Mickael abraçou-a, chegando-a mais para junto dele, acariciou-lhe o rosto, devagar,  e os cabelos negros longos e soltos, olhando-a nos grandes olhos cor de avelã, sem pressas, devagar. E, aproximando, então, a sua boca da de Irene, foi aflorando lenta e cuidadosamente os lábios femininos, com os seus, saboreando-os,  e entreabrindo-lhe a boca, por fim, para colar ambas as bocas uma contra a outra, explorando-lhe o interior  da dela com a língua, de modo suave.
Irene deixou-se fazer, deliciada com a ternura com que ele o fazia, e começou também ela a corresponder-lhe às carícias bucais, que duraram algum tempo. Estavam num canto mais discreto de uma rua não muito frequentada. Quando o beijo terminou, Mickael suspirou e disse:
- Que beijo maravilhoso! Meu amor! Adoro-te! Adorei este beijo! Tu correspondeste-me de uma forma tão doce!
-Também eu o adorei,  Mickael! Que bom! Que delicioso! Posso tratar-te por Mika, querido?
- Claro que podes! Como queiras! Estou tão feliz por me aceitares, por me corresponderes, Irene! Muito mesmo, querida!
- Acho que também te adoro, Mika! Nunca conheci ninguém como tu!
-Nem eu conheci nunca nenhuma rapariga como tu, meu amor!
-Eu também estou feliz por namorarmos, Mika! Ainda bem que saímos sozinhos, para podermos confessar os nossos sentimentos um ao outro...
- Sim! Eu ardia de vontade de estar contigo, assim, a sós... De que me aceitasses, de que nos beijássemos, meu amorzinho! Que bom!
- Eu também estava desejando estar a sós contigo, querido! Diante dos meus pais, não estava à vontade...
- Namoro e paixão são coisas para viver a dois, sem necessitar de mais ninguém por perto...
- Mesmo! Não te vais rir, se te confessar algo?
-Rir de ti, eu? Não, nunca! Porquê, meu amor?
-Porque tenho sonhado contigo, Mika! Nos meus sonhos, namoramos e tu me beijas e abraças, como acabaste agora mesmo de o fazer...
- Uau! Fico feliz por me contares isso! Eu também cheguei a sonhar contigo, precisamente a mesma coisa! Vem cá, querida!
Mickael estreitou um pouco mais Irene contra si, e deu-lhe um beijo na testa, perto dos cabelos, suavemente, passando-lhe um braço por cima dos ombros. Irene não esperou mais para passar, por sua vez, o braço pela cintura de Mickael, para seguirem assim pela rua, enlaçados, olhando-se nos olhos, constantemente, e murmurando doçuras um ao outro. Entraram finalmente num café, onde havia pouca gente, e sentaram-se num canto discreto, ao lado um do outro.
Irene preferiu tomar um chá, pois confessou que o café era algo que não a deixaria dormir, se o tomasse àquelas horas... Pelo contrário, seria garantia de uma noite de insónia.  E ela precisava de dormir, para descansar, aproveitando um pouco mais, porque o dia a seguir seria Domingo, e não trabalharia, portanto, na loja de flores. Mickael concordou em absoluto, e também preferiu beber um cálice de licor de whisky, em vez de café.
- Nunca bebi tal coisa! Que tal sabe isso?- Perguntou Irene, curiosa.
- Prova lá, então!- Convidou Mickael, estendendo-lhe o seu cálice, a que não tinha tocado ainda. -Já me dizes se gostas, minha linda!
Irene provou um poucochinho e saboreou o licor adocicado. Gostou.
- Então, minha princesa? Que tal?
- Muito bom! Tens bom gosto!
 -Pois tenho! E ao escolher-te a ti, como namorada, isso também  prova que tenho bom gosto: és linda, doce e inteligente! E ainda por cima, também gostas de mim!
- Claro que gosto! Eu também tenho bom gosto, vês? És lindo, romântico, e um homem com H grande! Querido Mika!
-Adoro quando me tratas por esse diminutivo, e nesse teu jeito doce, cheio de carinho!  Vou passar a tratar-te por Nini, quando estivermos sozinhos! Se gostares,  e aceitares, é claro...
-Que diminutivo tão fofo! E que carinhoso, também! Claro que aceito!
Irene sorriu, bebeu um gole do seu chá, e pausadamente, virou-se por um momento, apanhando algo dentro da mala de mão. Mickael olhava-a, curioso. Sorriu, ao ver o que ela tinha agora na mão: Era um bombom, dos que ele lhe tinha oferecido. Ela tinha metido uns quantos na mala, antes de sair,  sem ele ver. Chegou o bombom ao pé da boca de Mickael, e deu-lho a provar.
- Mmm...  que delícia! -Disse ele, trincando um bocadinho do bombom, de modo guloso, após o que ela meteu o resto na própria boca.
- É mesmo uma delícia! – Concordou a rapariga. E apanhou mais um, que partilharam do mesmo modo.
-Marota! Que gulosa e sensual que és!- Disse-lhe ele, baixinho, ao ouvido... Um dia, quando fizermos amor, vou querer lembrar-me de, também, comermos chocolates destes, partilhando-os, e partilhando também licor deste. Os teus lábios devem saber divinamente, com a mistura de chocolate e licor!
- E os teus, também! Daqui a bocado, poderemos tirar isso a limpo!- Respondeu ela no mesmo tom. Depois, ficou séria, e ruborizou-se, ao dizer, num murmúrio, ao ouvido dele:- Quando é que vais querer fazer amor comigo?
- Algum dia, minha adorada!- Respondeu ele, também segredando ao ouvido dela. E continuou:
-Vamos com calma, querida, que lá chegaremos! Quero muito que façamos tudo decentemente, e a seu tempo! Quero também poder fazer as coisas de modo seguro, sem atropelos, e de forma a podermos desfrutar disso ao máximo, os dois! Não concordas, Nini?
- Está bem, Mika! Claro que concordo contigo, amor!
- Vamos dar mais uma voltinha? A noite está linda, e apetece-me estar contigo, ainda um bocado, mas em outro lugar, a sós, longe de olhos e ouvidos indiscretos...
- Para darmos mais uns beijinhos doces...
-Sim, querida! É isso mesmo!
Saíram, depois dele pagar a conta, e voltaram a ir pela rua, abraçados, até chegarem a um jardim. Num certo sítio desse jardim, havia um abrigo natural,  que Mickael conhecia, e onde alguns casais de namorados se escondiam, por vezes, em busca de privacidade. Era formado por alguns arbustos, que ocultavam da vista exterior um banco. Constituía, assim, uma espécie de nicho. Ali, ao abrigo de olhares indiscretos, com a cumplicidade da escuridão da noite, e a pouca iluminação local, sentaram-se e beijaram-se intensamente. Ficaram algum tempo abraçados, em silêncio, gozando  essa sua intimidade recente. Irene decidiu então dizer algo que achou importante:
 -Mika: eu sou virgem, sabes? Nunca fiz amor com ninguém...
-Ainda bem, querida! Eu saberei ser paciente e cuidadoso, sendo assim, quando chegar a hora de termos intimidade física! E fica sossegada, que não vai ser já! Mas agradeço que te tenhas guardado até agora! Pois fizeste-o para mim!
- Sempre achei que devia continuar virgem até casar!  A possibilidade de intimidade física, do dom do meu corpo, a um possível parceiro, sempre foi para mim, algo muito sério! Acho que é algo a ser muito bem ponderado, e que só está certo ao abrigo de um casamento!
- E pensaste muitíssimo bem! Eu também sou da mesma opinião! Se tudo continuar a correr bem, entre nós, havemos de nos casar, meu amor! Depois, então, pertenceremos um ao outro, sem barreiras, nem problemas! Com todo o nosso amor, e respeito mútuos!
E por ali ficaram, mais uns momentos, beijando-se apaixonadamente, sem ninguém  ver nem espiar aqueles doces abraços e beijos, que dispensavam testemunhas.
 Os dias seguintes foram trazendo algumas mudanças na vida social de Irene. Pois em vez de sair tanto com as suas amizades como antes, tinha, forçosamente de ter muita disponibilidade para estar com Mickael, o que, para ambos, era fundamental, fora das muitas horas de trabalho de ambos, e da vida e convívio familiar. Os telemóveis de ambos enviavam agora frequentes mensagens carinhosas, diariamente. Encontros e saídas eram combinados constantemente.
As duas amigas mais chegadas de Irene, Sarita e  Marta, comentavam, certo dia, entre si:
- Já viste a sonsa da Irene? Parecia que não partia um prato! E zás! De repente, arranja um namorado!
 -Pois! Mas também, o que lhe deu, para aceitar aquele gajo, tão mais velho do que ela? Estará assim tão faltada de namorado?
- Aquilo foi namoro arranjado pelos pais! Não ouviste o que ela disse, outro dia? Que o namorado que ela agora tem, é colega do pai dela!
-Está na cara que ele cobiçou-se dela, e os pais dela concordaram com isso!
-Mas, apesar de ser mais velho, isso não é defeito: ele tem maturidade, ao menos!
-E o gajo é lindo! Que pedaço de homem!
-E um bom partido, ao que parece!
- Agora, ela já quase não vai querer sair connosco...
-Bom... Se calhar não pode...
- Pois é!Pensando bem, certamente, que, se alguma de nós duas tivesse namorado, também não teríamos tanto tempo disponível, para sairmos juntas...
- Sim, lá isso é verdade!
-O que importa é que ela seja feliz!
-Parecem gostar tanto um do outro!
-Ele parece doido por ela!
-Pois parece, efectivamente!
-E ela também anda doida por ele!
-Pois anda!Ela é boa moça! Merece ser feliz!
-Também acho!
Entretanto, o clima era de romance intenso entre os dois apaixonados, que decidiram, passado pouco tempo, avançar com o noivado, e marcar a data do casamento. Os pais de Irene rejubilavam com isso, tal como os de Mickael, que viam, por fim, o filho mais velho decidido a casar-se, e que engraçavam bastante com Irene.
Quanto ao casal de apaixonados, Mickael e Irene queriam organizar a vida de ambos, de modo a viverem juntos, quanto antes. Faziam muitos planos, que eram discutidos entusiasticamente entre ambos, e depois submetidos às opiniões de ambas as famílias. Mickael havia já apresentado Irene a seus pais. A jovem havia sido muito bem recebida pela família dele. Faltava só pôr os respectivos pais em contacto uns com os outros, para que os planos relativos ao casamento fossem postos em execução.
Uma tarde, Mickael disse a Irene:
- Querida, precisamos de falar com os teus pais sobre o assunto da nossa futura habitação.
-Certo, Mika!
- Gostaria que tanto tu, como os teus pais, me acompanhassem a visitar uma casa que recebi, recentemente, de herança dos meus avós. Necessita de algumas obras, afim de a preparar para ser uma habitação condigna para nós, depois de casarmos... Vou querer as opiniões deles, principalmente a do teu pai, que é um entendido em arquitectura e construção civil!
- Onde fica essa casa?
 - A poucas ruas daqui donde estamos! Queres ir vê-la, já?
- Sim, claro!
Encontravam-se, naquele momento, na loja de florista de Irene, sozinhos. Eulália havia tido de sair, por algum tempo, a tratar de alguns assuntos referentes ao negócio. Era de tarde. Como estava já na hora de fechar, embora a mãe não estivesse ali, Irene decidiu fazê-lo, e telefonar à mãe. Esta não atendeu o telefone. Irene enviou-lhe uma mensagem.
Saíram, e foram ver o que, afinal, era um belo casarão, antigo e nobre, mas, realmente, a precisar de algumas obras, pinturas, adaptações. Irene gostou, no entanto, da casa.
Estavam lá dentro, sozinhos. A claridade já era pouca. Parando, de repente, de falar da casa, olharam um para o outro, e abraçaram-se, como já o faziam constantemente. Era irresistível a paixão que os dominava, e o desejo constante de se beijarem e acariciarem, sempre que se encontravam a sós, ao abrigo de olhares ou presenças indiscretas.
- Querida! Apetece-me levar-te a passear, sozinhos os dois, ao campo, no meu carro! Que achas? Aceitas a proposta?
- Aceito, pois! Quando e onde?
- Quando estivermos de folga ambos! E vamos por aí, pela serra algarvia, a descobrir as belas paisagens que poderemos encontrar... Gostas do campo, Nini?
 -Adoro! É tranquilizante, é lindo!
- Também acho! Que tal se passássemos a nossa lua de mel num lugar desses?
- Onde?
- Num desses palacetes antigos,  no meio da serra, reabertos e adaptados como hotéis de turismo rural, com todo o conforto, e todo o sossego, para estarmos só nós dois, todo o tempo que nos apetecer...
- Que ideia maravilhosa!
- Vou mostrar-te alguma da informação que encontrei a esse respeito, e vais ver, vais adorar, tal como eu adorei!
Mickael pegou no seu telemóvel de última geração, e fez uma pequena busca rápida. Depois, mostrou o que encontrara a Irene. A rapariga foi vendo, com seu noivo, todas as fotos e informação escrita que iam descobrindo.
- É fabuloso! Mas que maravilha! E sai muito mais barato do que viagens ao estranjeiro! Aqui, ao menos, estamos em terra nossa, à vontade!
- Foi isso mesmo que pensei, querida! Não perderemos tanto tempo precioso, em viagem. Não nos cansaremos em vão, com transportes demorados e perigosos!  E teremos muito mais tempo para estarmos a sós, nós dois! E num ambiente calmo, paradisíaco!
- Cada dia gosto mais de ti, Mika, do que tu programas, do que tu imaginas e do que tu demonstras, com tudo isso, a meu respeito, meu amor!
- Tudo o que eu possa fazer por ti, é pouco, Nini! Adoro-te! Quero muito que sejamos felizes juntos!
Olharam um para o outro, com paixão, e mais uma vez, beijaram-se com entrega total. Uma terna amizade incipiente havia-se transformado em paixão, para aqueles dois seres, que viviam, agora, um para o outro. Só se sentiam felizes e realizados estando juntos. O futuro sorria-lhes, como o sol, quando brilha intensamente, em dia de Verão.

FIM

Nely, 
Março de 2017

sábado, 4 de março de 2017

ALMA À DERIVA
(A Cantora)


Marinela passa, cantando baixinho, de olhar indiferente… Ultimamente, é quase sempre a mesma canção, que lhe vem à cabeça, como uma obsessão… O vestido branco, comprido, agitado pelo vento, e os cabelos longos e soltos, louros, volteando em torno do seu rosto, e que ela nem afasta da frente dos olhos… Vai andando, sempre em frente, como sabendo de antemão, onde quer chegar. De facto, é como se alguma voz dentro dela lhe dissesse para onde ir, e o lugar é sempre o mesmo: a praia.
No meio do seu percurso, cruzou-se com uma cigana conhecida, viúva, aproximadamente da mesma idade do que ela. Túlia vive nessa aldeia há vários anos… Há algum tempo que se conhecem, de facto. Mas ela quase nem olha, quando Túlia passa rente a ela, e a saúda… Marinela nem dá atenção… Túlia ainda se vira para olhá-la, mais uma vez, e faz uma prece em voz baixa, olhando então para o Céu: - Misericórdia, meu Deus!
Marinela segue o seu caminho, com as palavras da canção que lhe alienam o cérebro, e lhe afloram involuntariamente aos lábios…
Outras pessoas a vêem… De um pequeno grupo, ajuntado a um canto de uma das poucas  ruas da aldeia de pescadores, vozes lhe provêem.  Mas, da conversa deles, capta apenas uma ou duas palavras, e ela está tão alheada que nem dá importância, como se estivesse surda, e como se não visse essas pessoas, cujos rostos já conhece de sobejo… São pescadores, em tempo de repouso, a conversar ao sol, e as mulheres deles. Sabem que Marinela não está nos seus dias normais, e tendo lançado algumas saudações sem resposta, em sua direcção,  não insistem…  Têm todos pena dessa pobre mulher atormentada, que se tornou, aos poucos, mais uma deles, que entra em suas casas, frequentemente, prestando-lhes pequenos serviços, em troca de alguns bens essenciais. É assim que funciona a vida, nessa aldeia de gente humilde, onde são todos amigos, e formam uma pequena comunidade fraternal.
Entretanto, Marinela continua o seu caminho, e já vai longe, na direcção da praia, descendo uma escadaria de pedra…
Aquele grupo de pessoas continua falando ainda, durante um bocado.
Mas, afinal, quem é Marinela? Porque vagueia, assim, a cantar baixinho, pelas ruas de uma aldeia, à qual chegou, há alguns meses atrás, e onde foi acolhida gentilmente pela sua gente simples e fraterna?
Há quem, entre eles, afirme, de acordo com o pouco que ela lhes revelou, que, devido a um drama na sua vida, ela ficou assim… Que quase enlouqueceu… Também tem sido vista, nessa mesma praia, à noite, inúmeras vezes, com a mesma longa túnica branca, que lhe serve de vestido, em certas ocasiões específicas, e a entrar na água… mergulha e volta a sair, seguindo a andar, junto à rebentação, mas cantando alto… Mais do que uma vez, ao princípio, espreitaram-na, curiosos, das dunas, e viram-na fazer gestos, como uma verdadeira cantante, virada, ora para a praia, ora para a água. Com o seu canto fazendo eco na praia, e com o ruído do mar a servir de orquestra… Como se estivesse mais alguém, invisível,  assistindo ao seu canto melodioso, sentido e expressivo… Nas últimas semanas, a canção é quase sempre a mesma: uma balada mexicana, que fala de sofrimento, de grilhões, de correntes e de abandono… Há, entre eles quem conheça  essa canção1.
 O que é facto, é que Marinela anda quase sempre triste… e quase sempre só… Não se lhe conhece família… como se não a tivesse… e os seus passeios à beira-mar são sempre em noites de lua cheia…
Mas, então, leitor, como sabe ela, ao dirigir-se, ainda antes do entardecer, à praia, que vai estar lua cheia?
Que presença invisível a conduz assim? Desvendemos um pouco desse seu mistério…
Marinela ainda é uma mulher bela, com pouco mais de quarenta anos… É uma presença interessante, e que poderia ser sempre agradável, se não se desprendesse dela, em ocasiões cíclicas, esse ar alheado, indiferente… Se não se sentisse, além disso, esse frio desagradável,  ao chegar-lhe perto, nessas ocasiões… Há quem consiga ler, ou ver, a aura de outras pessoas… a dela, para quem já a viu, dizem que é escura, certos dias, mas não totalmente negra… Há quem a tenha ouvido de perto, a cantar perfeitamente, outras canções nostálgicas, sempre em espanhol… No entanto, ela fala perfeitamente em português…
Perto da praia, uns quantos metros acima das dunas, há uma pequena casa antiga, assente sobre as rochas, onde parece, à primeira vista, não viver ninguém… mas é habitada por uma outra mulher, já muito idosa… Marinela dirigiu-se para lá, bateu à porta e entrou, de imediato, sem esperar... Uma das janelas dessa casa, virada para o mar, está aberta, e a brisa fresca, marítima, agita o cortinado antigo de renda multicolor que a adorna e a resguarda de olhares indiscretos… Essa mulher idosa, por dentro da janela, observava, há momentos, Marinela, atentamente… Como cada noite, ela esperava já por Marinela… Essa anciã conhece-a muito bem, e chama-se, por sua vez, Eunice… A face de Eunice está sulcada de mil rugas miudinhas, como se fosse um pergaminho prestes a romper-se. Mas o seu olhar não é o olhar velado de uma velhinha muito idosa… pelo contrário: trata-se de um olhar vivo, arguto e inteligente. Tem uns olhos azuis claros, límpidos como água. Lê-se neles bondade, compaixão. Foi uma senhora bastante bela, outrora, e ainda se lhe notam vestígios dessa grande beleza, nos traços regulares do seu rosto… Os seus cabelos, outrora ruivos, cor de fogo, são agora completamente brancos, como neve, brilhantes e abundantes. Estão presos num volumoso carrapito que descai sobre a sua nuca, e com algumas madeixas soltas, à frente, que lhe emolduram, de modo natural e suave, o rosto. Traz uma rosa purpúrea de tecido, colada a um pequeno pente e presa nesse carrapito, num dos lados… Parece uma boneca sevilhana antiga, excepto na côr dos cabelos: Um xaile típico, de seda, de côr azul escura, e de longas franjas, lhe cobre os ombros, e um vestido  de seda claro, com flores estampadas em cores alegres, combinado com o xaile, num modelo extremamente feminino, com um folho largo em baixo, lhe cinge o corpo até aos pés. Eunice nunca se rendeu às sucessivas variações, nem aos ditames, da moda, ao longo do tempo… Preferiu sempre compôr seu próprio estilo, um tanto excêntrico, e mantê-lo. Eunice, além de ser ainda bela, é bastante alta e elegante. Não tem as costas curvadas, curiosamente… Se não fossem as rugas, e os cabelos brancos, pareceria jovem…
 Na aldeia, todos conhecem Eunice, e há também quem a visite, várias vezes, pois ela quase nunca sai de sua casa, mas nada lhe falta. Ela cuida de seu lar, conforme pode… Marinela também visita, diariamente, Eunice, e lhe presta a sua ajuda, em tarefas e recados que já são superiores às forças da anciã. Há quem já as tenha visto, a ambas, sentadas na varanda dessa casa, de frente para o mar… De facto, Eunice tem tomado Marinela a seu cuidado… Na aldeia, chamam a Eunice “a Grande Irmã”… Como se ela fosse a “Madre Teresa de Calcutá” do lugarejo… Algumas dessas pessoas já têm recorrido aos seus serviços… Porque Eunice tem bom coração, gosta de ajudar as pessoas… Eunice tem valido a Marinela, desde que esta chegou à aldeia… Tem alguns dons especiais, entre os quais o de ter visão das coisas espirituais ao seu redor, e saber discernir o que essas coisas são.
Entremos na sua pequena, mas muito limpa, arrumada e bonita casinha, e saibamos, com ela, um pouco mais, sobre a sua protegida… Eunice está à conversa com duas pessoas, que seguiram Marinela de longe. São familiares de aldeões do lugar, e estão de visita à aldeia… Pessoas bem intencionadas, que foram visitar Eunice, para tentar apurar o que se passa com Marinela, mas no intuito positivo de fazerem algo pela infeliz cantora. Sabem apenas o seu nome, e que não é desta aldeia… Perguntam a Eunice como foi que esta senhora veio a conhecer e a auxiliar Marinela… Eunice, conhecendo-os, e sabendo das boas intenções deles, pelas boas energias emanadas de quem a entrevista, e que ela captou logo, responde sincera e simplesmente:
-Marinela apareceu por aqui, quase morta de cansaço, de dor e sofrimento… Já lá vão mais de seis meses…
- Coitada! Como sucedeu isso?
 -Foi encontrada caída na praia, junto às rochas, inconsciente, gelada de frio, e encharcada, pelos pescadores locais, que vinham da faina, de madrugada, e trouxeram-na em braços para a minha casa… Estava em tal estado que quase não falava… Muito magra, sem forças… Cuidei dela com a ajuda de outras amigas da aldeia, como a Túlia, que é uma pessoa muito generosa… Marinela ficou aqui durante mais de um mês, de cama, com uma bronco-pneumonia, diagnosticada pelo médico que mandámos vir da vila mais próxima. Túlia foi incansável à sua cabeceira, dias e noites a fio, e também as outras amigas, à vez, para permitir que Túlia pudesse, por sua vez, descansar e também eu… pois a mim faltavam-me também, as forças, muitas vezes, para velá-la, nas longas horas em que permanecia febril e a delirar…
- E chegaram a saber donde provinha ela? Se tinha família?
 -Veio de muito longe…Do estrangeiro… Não tem mais ninguém… Soubemo-lo mais tarde, quando ela recobrou os sentidos, e que a febre a deixou… Adoptei-a, de certo modo… Adoptámo-la, entre todos… E ela a nós! Afeiçoámo-nos todos a Marinela… E ela a nós… Mas, no entanto, continua sendo livre das suas acções…

- E onde vive?Aqui consigo, Dona Eunice?
-Não vive comigo, actualmente…  Vive no outro extremo da aldeia, numa casinha que já não pertencia a ninguém, e que a ajudámos, entre todos, a repôr em condições de ser habitada… Mas Marinela vem por cá todos os dias… E às vezes, fica por cá, se lhe apetece, ou caso se sinta cansada… Não a prendo… Vem quando quer, quando sente a necessidade, ou se eu mesma precisar dela… Sabe que é sempre bem-vinda… Que farei sempre o que puder por ela, enquanto eu por aqui estiver…
- É muita gentileza da sua parte… E o que terá motivado essa vinda para cá, e nessas tão terríveis condições?
- Ela teve um grande desgosto amoroso… E uma grande desilusão artística… Ela é uma artista nata… mas pouco ou nada conhecida no nosso país… Cantou, e encantou, por outras terras, quando era jovem… Fizeram-lhe várias promessas de fama e de sucesso, que nunca foram cumpridas… E foi vítima de uma bruxaria muito forte… Tenho orado por ela, a Deus, e tentado ajudá-la, o mais possível, para que não enlouqueça…
-Então, essa senhora não é, realmente, louca?
 -Não! Não é louca! Claro que não!  Mas, certos dias, o feitiço que lhe foi lançado ainda tem força bastante para a dominar…
- Disseram-nos que ao passar por ela, certos dias, sente-se um frio gélido…
-Sim! E é por causa desse feitiço que lhe foi lançado, que se sente, nessas ocasiões, um frio gélido nela…
-Coitadinha!
-E o sofrimento, que ela demonstra, nessas ocasiões, lhe provém de ainda não ter conseguido curar-se totalmente do desgosto que a consome…
- E o que a Senhora acha que poderíamos fazer por ela, para ajudá-la? Levá-la a um psicólogo, talvez?
- A Marinela precisa de libertação, de carinho, amizade, ou até de amor… E isso não vem com consultas de psicologia, desculpem-me a franqueza… Com a minha idade, e a minha experiência de vida, conheço o bastante da alma humana, e da própria Marinela, também, nesses meses de lidação…Ela precisa também, se ainda fôr possível, do reconhecimento público, respeitante ao seu verdadeiro e grande talento… Pois só assim poderá curar-se totalmente…
- A Senhora, Dona Eunice, deve ter razão, certamente!
-Mas do que ela precisa, sobretudo, é de entregar-se nas mãos misericordiosas de Deus, para que os espíritos maus, que a têm querido destruir, a deixem, de vez, e que seja completamente e efectivamente livre… Cantar alivia-lhe, todavia, o sofrimento…
 - Então, e se alguém tentasse ajudá-la, pondo-a a cantar para a população local, para começar, por exemplo, e mais tarde, em público, ou num estabelecimento conhecido? Não seria bom para ela?
- Talvez! Se gostassem de a ouvir, e se quisessem que ela actuasse, para um público um pouco limitado, ao princípio, mas sem lhe prometerem coisas impossíveis… poderia ser que ela, sentindo-se realmente apreciada, se fosse recuperando…
- Temos uma ideia, ou melhor, um plano, para essa ajuda:Vamos juntar umas quantas pessoas, da aldeia, e vamos vê-la actuar na praia, esta noite, sem ela dar por nós… De modo a que ela não se sinta incomodada… Só um pequeno grupo… Se gostarmos do seu canto, aplaudiremos no fim, e veremos a sua reacção… Mas não lhe diga nada ainda…
- Tenho a certeza que vão gostar! Ela canta mesmo bem: com sentimento genuíno, com alma! Prometo que nada lhe direi… Eu mesma irei vê-la, também, quando estiver a cantar, ao luar… Ela não começa a cantar antes de que a lua illumine o mar…
-Então, está combinado! Esta noite vamos vê-la! Até logo!
-Até logo, amigos!
E a conversa fica por aqui… Eunice despediu-se das suas visitas… Não quer ficar muito à vista, na praia, por enquanto. Nem da própria Marinela, que antes dos visitantes terem ali chegado, já havia saído para a praia, nem do reduzido público, que se vai juntar, secretamente, nas dunas… Eunice tem as suas próprias razões…
Por várias vezes, houve alguns dos habitantes mais jovens da aldeia que se atreveram a espreitar Marinela, porém entenderam, na sua sinceridade e simplicidade de alma, que estavam a desrespeitar uma dor que não compreendiam, de início, mas que os impressionava... Compreenderam que Marinela precisava de estar sozinha nessas horas de delírio junto ao mar... Pois ouviram-na nessas várias vezes, falar antes de cantar, dirigindo a sua voz para o mar, em tom bastante audível... Chegaram a ir falar com Eunice, e confessar o que haviam feito sem que Marinela os visse... Eunice explicou-lhes o que se passava com Marinela. E aos poucos foram percebendo que Marinela fazia isso afim de se ir libertando daquilo que a fazia sofrer. Eunice viu desde o princípio as correntes espirituais, os grilhões dessas correntes, que Marinela arrastava consigo, e de que Marinela necessitava libertar-se... A própria Eunice  foi-se apercebendo de que, ao Marinela cantar, os grilhões que a aprisionavam iam afrouxando, a pouco e pouco... No entanto, e apesar de muito interceder em oração a Deus pela sua amiga, Eunice entendeu rapidamente que à própria Marinela cabia a decisão de se entregar a Deus, com oração, para que a sua cura começasse, e prosseguisse. Eunice quer dar tempo a Marinela para estar a sós na praia, e ambientar-se, como a cada vez... Ela sente que Marinela necessita desse ritual de vaguear descalça pela praia, uns momentos, antes de elevar a sua voz na direção das ondas, afirmar-se, como pessoa que se reergue após uma queda... E depois, cantar, com quanta alma tem, para um destinatário que se encontra para lá do mar... Lá longe, não se sabe bem onde ao certo, e de onde Marinela veio, ela mesma...
Uma hora passou, e a noite de Verão dá ao lugar um encanto especial... poucas luzes, das janelas da aldeia, se avistam agora a brilhar... Somente a luz do velho farol, num pequeno promontório próximo, lança um feixe de claridade intervalada sobre o mar... A lua irrompendo no céu, lança, nesse momento, por sua vez, miríades de manchas prateadas sobre o mar, e alguma claridade, sobre a praia envolta em sombra.
No alto da duna, a casinha também tem a luz acesa... Eunice, envolta num xaile de lã, sai discretamente pelo outro lado da casa, prestando atenção ao pequeno caminho pedregoso que desce até às dunas. Quando lá chega, já um pequeno grupo, formado pelos vários aldeões e pelos visitantes, está sentado na areia das dunas, de modo bem dissimulado. Até Túlia quis marcar presença, para assistir ao espectáculo solitário de Marinela, que reaparece agora, devagar, quase junto à água. Marinela, sem desconfiar de nada, entregue à sua dôr, concentra-se, vira-se para o mar...
A sua voz faz-se então ouvir, falando de modo bem claro, nesse momento:
- Si me escuchas, en donde quiera que estés, sabrás que me hás herido el alma profundamente, amor mío! Y que yo canto, como siempre, junto al mar, para que el viento y las olas se lleven hacia tí el eco de mi voz, y te enteres de una vez y por siempre, que, hasta hoy, he sufrido el amargo dolor de tu partida, de tu traición! He querido perdonarte, he querido olvidarte... y aún no lo he logrado totalmente! Pero te juro que lo intentaré! Una y outra vez, hasta que lo logre de una vez! Que me libere hasta de tu recuerdo!2
Marinela começa então a cantar, meio virada para as dunas, em espanhol, como sempre:
- “Yo quiero luz... de luna, para mi noche triste... para sentir, vivida, la ilusión que me trajiste...[...] si llevo tus cadenas, arrastrando en la noche callada, que sea plenilunada, azul, como ninguna... pues desde que te fuiste... no he tenido luz de luna...”3
A voz vibrou, profunda, pungente, na noite serena, interpretando de modo bastante sentido, a música de Javíer Solís3 ... o mar fez eco às suas palavras, cantadas à capela... Eunice, escondida atrás da duna, um pouco atrás dos outros aldeões, observou a cena... Viu Marinela cantar, dançar, dobrar-se, cruzar ambos os braços envolvendo o peito, chorando, enquanto cantava... Ela viu a aura da cantora, ainda escura, envolvendo-a... e viu também mais uma vez, os grilhões das correntes espirituais que a prendem realmente... Atrás, e à volta de Marinela, agita-se uma sombra negra que só Eunice consegue distinguir... Mas Marinela continua a cantar... Desta vez, uma outra canção, de outro cantor, mas espanhol e não mexicano:
“Como buscan las olas, la orilla del mar, como busca un marino, su puerto, su hogar, he buscado en mi alma, queriéndote allar... y tan solo encontré... mi soledad”4...
A alma de Marinela, nessa noite, está cheia de canções, canções magoadas, que afloram ao seu pensamento e aos seus lábios, deixando atónitos os que a observam e a escutam, de lágrimas nos olhos:
“A cara ó cruz, así se gana ó se perde un amor, a cara o cruz, hoy, un te quiero, y mañana un adiós..”5
“Procuro olvidarte, siguiendo la ruta de un pájaro herido[...]6
As correntes que Eunice vê, acorrentando a alma de Marinela, começam então a quebrar-se, a pouco e pouco, não escapando o fenómeno aos olhos atentos de Eunice... A sombra malévola afasta-se dela em direcção à água, e acaba por desaparecer, finalmente, nas ondas... Marinela, entretanto, continua com outra canção:
“[...]Pero te fuiste, y que regressabas, no me dijiste, y sin más nada... porqué? No sé... Pero fué así... así fué... Te brindé la mejor de las suertes... me propuse no hablarte ni verte... Y hoy que has vuelto, ya vés, solo hay nada...Ya no puedo, ni debo quererte... Ya no te amo... Me he enamorado... de um ser divino, de un buén amor... que me enseñó a olvidar, y a perdonar... ahahhhaha ahahahahaha....”7
 Até mesmo Túlia, que veio ver Marinela, sorri, ao ver que a cantora parece mais aliviada, a cada nova canção... Túlia continua orando baixinho, pedindo:
- Senhor: liberta-a de todo esse mal! Nós não sabemos fazê-lo, e nem podemos... mas Tu podes! Liberta-a, agora, Senhor, que a sua alma se virou para Ti! Que reconheceu em Ti o seu Salvador!
Pois Túlia sabe que, no seu desespero, Marinela já fez algumas vezes preces, a pedir a Deus que a libertasse...
Marinela cessou agora seu canto... cansada, avança lentamente para as dunas, enquanto um múltiplo e caloroso aplauso ecoa na praia, surpreendendo-a, pois que, entregue à sua dor, não deu pela presença daqueles que agora considera seus amigos... Lâmpadas de vigília estão agora acesas, e eles envolvem-na com sorrisos calorosos e exclamações sinceras:
- Bravo Marinela! Foste maravilhosa! – Chico, o pescador mais jovem da aldeia, que a admira muito, não se conteve.
- Adorei ver-te, e escutar-te,Marinela!  Que talento! E que sentimento! – Exclama Lena, uma jovem da aldeia,  e a que mais a aplaudiu.
- Viva a nossa amiga Marinela!
-Grande cantora, pá!
-Grande mulher! Viva!- São as vozes um pouco rudes, mas sinceras, dos pescadores que a admiram e a respeitam profundamente.
- Marinela, vem cá, querida! Não apanhes frio... – É, agora, a voz solícita de Eunice, a qual chegou junto dela, e lhe passa, de imediato e gentilmente, um xaile florido por sobre os ombros, e lhe afaga o cabelo desalinhado pela aragem marítima, ternamente.
 Marinela sorri, de lágrimas nos olhos e, comovida, agradece aos seus amigos, olhando ora para uns, ora para outros:
-Obrigada, Chico! Obrigada, Eunice! Obrigada, Lena, Mário! Zé! Olinda! Obrigada a vocês todos! Meus queridos amigos! Vocês é que são grandes almas! Obrigada, Túlia! E perdoem-me, todos, se não vos falei, esta tarde! Ia desorientada! Perdão! Se não fossem vocês todos, que seria de mim?
Tudo isto foi dito por entre vários abraços, que lhe são dados por esta gente simples, mas de corações sinceros, e lágrimas de gratidão, que lhe saltam dos olhos comovidos ...
 -Agora, vamos todos beber um copito, à saúde e ao talento de Marinela! - Propõe Jaime, o dono da pequena taberna da aldeia. - Por conta da casa!
 Viram, então, todos, costas à praia, enquanto voltam a subir pelo caminho empedrado, de regresso à aldeia, no meio da qual está a taberna “ O Bom Cantinho”...
 Eunice vira-se, uma última vez, e olha para o mar... O seu olhar claro de vidente vê agora que as grilhetas que acorrentavam Marinela, e que desvanecem, a pouco e pouco da areia,  estão agora a ser levadas pelas ondas, que lavam a praia, deixando a areia lisa, sem pegadas, nem marcas algumas... A sombra demoníaca desapareceu, graças a Deus! Já não se sente o incómodo frio envolvendo a artista.
 Passaram mais dois meses...  Marinela cantou mais um par de vezes, junto ao mar, do mesmo modo, mas um pouco mais aliviada a cada vez... e cada vez mais aplaudida... Foi-se acostumando à presença dos seus amigos na praia, durante esse ritual de libertação... Marinela prepara-se, agora para actuar, novamente, na praia, mas desta vez, num palco montado ao pé das dunas, entre o promontório do farol, e a aldeia... Foi ideia dos seus amigos... Quiseram render uma homenagem ao seu talento, e organizaram esse  espectáculo para a data da festa da aldeia. Alguns dos jovens sabem tocar guitarra, acordeão... Vão acompanhar a sua bela e forte voz, com o som dos seus instrumentos... Lena, que também tem bastante jeito e uma voz bonita, servirá para fazer-lhe coro, juntamente com Olinda... Marinela concordou em cantar com e para eles, a cada festa anual, e em todas as ocasiões em que seja necessário, sem custos para eles, conforme ela própria impôs, em agradecimento pelo carinho e amizade de que é alvo... O seu sorriso é caloroso, ao cumprimentar os seus amigos, de passagem, a cada dia em que circula pela aldeia... e os seus olhos já não têm expressão de sofrimento... Já não passa indiferente, embora saia frequentemente, a caminho do mar, ou da casa da sua grande amiga Eunice... Eunice, por sua vez, examina a sua aura, a cada dia,  e distingue várias cores, como um arco-íris, a envolvê-la... Eunice sabe que a cura de Marinela está acontecendo ainda, dia após dia... Sabe que Marinela está a reaprender a ser feliz...
Eunice também sabe, tal como todos, na aldeia, que o coração de Marinela tem agora um novo dono: a cantora entregou a sua vida a Jesus, em oração, na presença de Eunice e de Túlia, que a ajudaram a converter-se ao Senhor...
 Marinela resolveu, também, permanecer definitivamente na aldeia. Sente-se agora feliz ali, e não deseja mais nenhum lugar para viver. Continua a prestar os seus serviços nas casas dos seus amigos, ajudando a limpar as casinhas, pintar, tratar das crianças da aldeia, ensinar-lhes algumas coisas, cuidar de alguém que esteja doente... ensaiar canções com os jovens, e ainda faz roupas e agasalhos de malhas, rendas, para ganhar o seu sustento... Continua a apoiar Eunice, a cada dia... e a receber, em troca, todo o apoio e carinho, da sua idosa, mas solícita amiga. E de todos os seus amigos da aldeia, que se tornaram a sua família escolhida, e sem os quais já não saberia estar.


FIM

Notas:
1 – Parte de uma canção de Javier Solís, intitulada “Luz de Luna”.
2- Escrevi em espanhol, originalmente para dar mais ênfase à narrativa. Assumo, assim, que Marinela é de origem meio espanhola. Tradução: “Se me escutas, onde quer que estejas, saberás que me feriste a alma profundamente, meu amor! E que eu canto, como sempre, junto ao mar, para que o vento e as ondas levem consigo e até ti, o eco da minha voz, e fiques a saber, de uma vez e para sempre que, até hoje, sofri a amarga dor da tua partida, da tua traição! Quis perdoar-te, quis esquecer-te... e ainda não o consegui totalmente! Mas eu juro-te que vou tentar fazê-lo! Uma e outra vez!Até que o consiga de uma vez!
3- Trata-se precisamente da canção citada na anotação da alínea 1.
4- Parte de uma canção de Julio Iglesias, intitulada “Gwendoline”.
5- Parte de uma canção do cantor  José Velez, intitulada “A Cara ó Cruz”.
6- Outro trecho, de uma outra canção de José Velez, intitulada “Procuro Olvidarte”.
7- Parte de uma canção de Isabel Pantoja, intitulada “Asi Fue”.
8- Nota extra: Esta história é obra de ficção completa, tanto nos factos como nas suas personagens.




UMA GATA ESPECIAL

História especialmente dedicada ao meu filho, Marcos Carlos:                                      



Uma gata Especial

Nascida numa casa de família, em simultâneo com uma ninhada de irmãos e irmãs de pelagem diversificada, em tonalidades e cores, Zuleica era uma linda gatinha preta, muito meiga. Porém, um dia, sendo ainda pequeninos, com cerca de dois meses de idade, ela e seus congéneres foram vítimas dos donos pouco escrupulosos, que os levaram, de noite, para fora de casa. Nessa noite, foram separados para sempre da mãe e do pai. Deixada junto com seus irmãos perto de uns armazéns, na zona norte da cidade, por ali acharam lugar onde abrigar-se, no meio de ruínas dessa antiga zona industrial.
A partir daí, com alguma sorte, apesar de tudo, no meio da desventura de se ver livrada a uma vida errante, Zuleica pôde encontrar alimento, que lhe era facultado por algumas das muitas pessoas que trabalhavam nessa zona da cidade… Antes disso, não tivera nome, pois os antigos donos nem lho haviam posto... Mas um dos empregados de armazém  que a protegera, esse mesmo lhe havia achado beleza e graça, e lhe havia dado esse nome. Ela respondia já por esse nome, quando esse seu amigo a chamava para lhe dar comida, ou para lhe fazer festas.
O tempo foi passando, e com cerca de um ano de idade, a gatinha, agora crescida e tornada adulta, viu-se cortejada por alguns gatos que já por ali andavam… Múltiplas brigas nocturnas, entre os felinos residentes da antiquíssima zona, onde, à noite, não se encontrava vivalma, lhe ensinaram o que era ser pretendida pelos vários machos que a disputavam, por entre as suas iguais, que já por ali iam vivendo… Até que, tendo-se agradado de um deles, acasalaram por fim, depois de algumas hesitações, muitas miadelas de cio de ambas as partes, e uns bons arranhões à mistura. Um dia, já pesada a barriga da gravidez, em vias de parto eminente, acolheu-se num abrigo proporcionado pelo pessoal de um dos armazéns maiores. Pessoal esse que, com o zelo de protecção aos animais, se havia lembrado de a preferir aos outros e de a mimar, e entre os quais, esse amigo que a costumava chamar e alimentar. Sorte a sua! Passadas umas horas, num cantinho mais abrigado do velho armazém, Zuleica dava à luz os seus gatinhos. Alguns eram negros como ela, de olhar mimoso, quase triste… Outros eram malhados, a três ou a duas cores, e um deles inteiramente tigrado, pardo. Zuleica cuidou dos seus filhotes o máximo possível, não se tirando do pé deles, até porque as pessoas mais sensíveis, que a haviam tomado sob a sua protecção, arranjavam-lhe sempre comida em abundância e também água, para si e seus filhotes.
Um dia, Daniel, um dos numerosos rapazes que costumavam passar frequentemente por ali,  a caminho de um dos  armazéns para os ensaios com a sua banda musical e o qual ia ter com os amigos, reparou em Zuleica e na sua linda e diversa ninhada, pois a porta estava aberta, e Zuleica saíra a apanhar sol com os filhotes, à entrada. O armazém ao qual Daniel se dirigia, e que servia de estúdio de ensaios à banda musical dos seus amigos, ficava mesmo a dois passos dali.
- Que ninhada tão interessante! - Pensou. – E se eu levasse daqui um desses pequeninos, para fazer-nos companhia, lá em casa?
Seguiu o seu caminho, a sorrir, perante a perspectiva de ter em casa um gato ou uma gata, como sempre quisera. Vivia sozinho com a mãe. O pai, Filipe, morrera quando ele ainda era pequeno.
Ao voltar para casa, nessa noite, no meio de uma conversa, ao jantar, falou no assunto a Eugénia, sua mãe, com quem vivia, e que, tal como ele, adorava animais:
- Ó Mãe! Não queres ir amanhã comigo, fazer as compras ao hipermercado, e já agora, dar uma assomadela ao atelier de pintura de t-shirts?
- Ao atelier das t-shirts? Já tens os desenhos prontos para as mandar fazer? - Perguntou a mãe, interessada.
- Já! Posso mostrar-tos depois de acabarmos de comer, ok? - Retorquiu Daniel, entusiasmado.
- Certo! E porque pensaste em mim para acompanhar-te? - Indagou Eugénia, curiosa.
- Sei lá! Estás quase sempre aqui sozinha, sais sozinha também, quase não convives, pouco te distrais… Eu sempre andei contigo, desde pequeno, para toda a parte… Agora, acho que te faria bem distrair-te um pouco. E também preciso da tua opinião para as t-shirts que quero encomendar!
Eugénia olhou para o filho, a sorrir, e disse:
- Então, está bem! Irei contigo! Talvez também possa encomendar uma para mim! Vi esta tarde, na Net, uns desenhos interessantes, que talvez a pessoa que imprime as t-shirts possa reproduzir para mim…
- Onde tens os desenhos? Guardaste-os?
- Sim, já tos mostro! - Disse a mãe, dirigindo-se ao computador de ambos, do qual se servira de tarde, a fim de fazer uma das suas muitas e costumeiras pesquisas. - Abrindo uma pasta no ambiente de trabalho do aparelho, mostrou ao filho alguns desenhos que, na sua maioria, eram moldes lindos para pintar, ainda em branco… outros, cheios de cor, eram modelos grátis de passo-a-passo para pinturas em tecido.
- -Olha para este beija-flor! Não é o máximo? E este arco-íris com o rio em baixo! Tão lindos!
- Gosto muito do beija-flor, mãe! Acho que devias levar esse, principalmente, para imprimir sobre uma t-shirt branca…
-Sim! Também prefiro esse mesmo! Mostra-me lá os teus desenhos então!
- Ora bem, aqui estão eles: as silhuetas de uma banda musical, ou seja, afinal, a minha! E vai ficar, como podes ver, sobre um fundo em preto. Que achas?
- Está giro! Acho que sobre uma t-shirt, deve ficar o máximo!
 A conversa prolongou-se um bocado pela noite dentro. Daniel perguntou finalmente à mãe:
- Ó mãe, o que achavas de arranjarmos um gatinho, ou uma gatinha, para nos fazer companhia? Há tanto tempo que não temos animal nenhum de estimação …
- Porque não? Também tenho saudades de ter um bichano cá em casa! Mas onde iríamos arranjá-lo?
- Vi uma linda ninhada hoje, lá perto do nosso estúdio da banda. Com a mãe gata. São lindos! Daí, lembrei-me! Se vieres comigo, amanhã, dá para vê-los! Estão por lá, certamente.
- Não fogem? Não são muito bravios? E a mãe? É mansa? - Perguntou Eugénia, cautelosa.
- Não, não são muito bravios! E a mãe está habituada às pessoas! É mansíssima! Penso que são protegidos por aquele pessoal que trabalha ali… estão bem tratadinhos! Muito lindos, mesmo! Posso falar com o pessoal lá do sítio! Conheço-os, vou informá-los, ou ver se por lá está algum deles, quando formos ao atelier! Quem sabe, talvez possamos trazer logo um deles para casa!
-E porque não, realmente? Ah! Ah! Ah! Que depressa tu resolves tudo! - Respondeu a mãe, divertida com a situação.
Na tarde seguinte, ambos trouxeram logo, efectivamente, para casa, uma linda gatinha, branca e malhada parda, que, a contragosto, lá se deixou apanhar, não sem algumas sopradelas e tentativas de arranhar e morder. Era um bocado bravia e bastante valente!
Puseram-lhe um nome engraçado, depois de muito bem discutirem o assunto entre si: Enid.
- Vai chamar-se Enid. – Decidiu finalmente Daniel
-Como a Enid Blyton, não é?-Perguntou Eugénia.
-Enid Blyton, a escritora! Sim! – Respondeu o rapaz, convicto.
-Aquela que é autora daqueles livros que te li quando eras mais pequeno!
-Sim! Exactamente! Eram o máximo! Mas não é por isso que lhe quero por esse nome…
-Ai não? Então?
- Estive a ler significados de nomes e descobri que Enid é um nome de origem celta e que significa “espírito, ou alma”. Assim, terá um nome mágico! E será uma gata especial… Aliás, já o é!
-Mas que interessante! Nunca tinha pensado nisso!
- Assim, se alguém nos perguntar acerca do nome da gata, temos um álibi bastante engraçado  e lógico para responder. Mas o verdadeiro significado e motivo será segredo nosso, não é, mãe?
- Muito bem pensado!Assim mesmo!
Mal sabia Zuleica, quando viu que lhe tiravam a sua linda filhota, que esta ia para uma casa especial, junto de pessoas especiais, para vir a ser uma gata muito especial! Mas Zuleica não se zangou por lhe tirarem a filha, pois sentiu logo as boas ondas da energia benévola e firme daquele rapaz, que adorava gatos, e que por todos eles era adorado. Zuleica soube, por instinto, logo à partida, que ele e a sua filhinha iriam ter uma bela relação de amizade. Ela própria gostou logo dele: Inspirava-lhe total confiança! E, ao fim e ao cabo, sabia que os filhotes não iam ficar para sempre consigo: teriam de crescer e enfrentar a sua própria vida como um desafio, como qualquer gato de rua…
Entretanto, Daniel e sua mãe tratavam de ambientar Enid, que, ainda assustada, por não conhecer nem os donos, nem a casa, escondia-se em todos os recantos possíveis e principalmente naqueles que eram menos acessíveis, onde não a podiam apanhar. Com muita paciência, no decorrer dos dias, tanto Daniel como Eugénia, sua mãe, foram conquistando a gatinha. Mas, para surpresa de ambos, quando algumas visitas vieram, cerca de um mês depois de ela viver com os donos, Enid teve um comportamento curioso e inusual: Perto da porta de entrada do apartamento, ela rosnou, eriçou-se e, seguidamente, correu a esconder-se. Isto deu-se poucos minutos antes de os visitantes chegarem. Daniel bem falou dela aos seus amigos Henrique, Joel e Dinis… Em vão! Pois ela não queria aparecer, por muito que a chamassem e a tentassem encontrar! Enquanto os amigos de Daniel se mantiveram por ali, Enid manteve-se oculta, e ninguém logrou saber onde ela se metera. Só muito mais tarde, já avançada a noite, quando só Daniel e Eugénia se encontravam de novo sós, é que ela, sentindo-se já mais segura, reapareceu.
E assim continuou a proceder, sempre que vinham visitas a casa, fossem elas quais fossem. Os amigos de Daniel acabaram por pôr-lhe a alcunha de “a gata invisível”, por brincadeira. Alcunha que vigoraria por algum tempo entre eles, até que Enid começasse a sair do esconderijo, aos poucos, e dar-se a conhecer, aventurando-se primeiro de longe. Só muito mais tarde começou a vir cheirar esses mesmos rapazes que eram visitantes usuais e frequentes da casa de Daniel.
Enid adorava o dono, e só  a ele obedecia... Eugénia era gentil com ela, e Enid consentia festas da dona, sabia fazer-se entender dela apenas com uma troca de olhares... Sabia ser mimosa quando queria... Eugénia, conhecedora de que esta bichinha era uma gatinha diferente das outras, admirava-lhe a inteligência, e falava-lhe docemente, mas tal como se falasse a um ser humano. Ela sabia perfeitamente que o dono do coração dessa gatinha, o “escolhido” por excelência, era Daniel, com o qual a gatinha tinha mesmo uma relação ciumenta.
Eugénia teve a prova disso, certo dia. Daniel recebera a visita de uma rapariga que andava doidinha por ele.
Arminda, ao entrar em casa de Daniel, reparou na gatinha e quis fazer-lhe festas. Enid esquivou-se, olhando-a de modo desconfiado. Daniel avisou-a:- Olha que a Enid não dá confiança a ninguém! Toma cuidado! Mas Arminda não acreditou muito nesse aviso:
-Ó, que gira! Mas porque é que ela foge, Daniel? Eu só lhe ia fazer umas festas...
- Deixa lá! A Enid é desconfiada! Não dá mão assim facilmente a qualquer pessoa!
-Enid? Chama-se Enid? Que nome tão estranho!
-Não te lembras dos livros da Enid Blyton? Os cinco, os sete, etc...
-Ah! Sim! Já me lembro! Mas o que é que isso tem a ver com a tua gata?
-Eu adorava os livros da Enid Blyton... Então, lembrei-me de pôr o nome da escritora à minha gata, como homenagem...
Só Daniel e a mãe sabiam o verdadeiro motivo de Enid ter herdado o nome da saudosa e célebre escritora. Não o haviam revelado, no entanto, a quem quer que fosse. Era um segredo entre mãe e filho. Mas havia um pouco de verdade naquilo que Daniel acabar de dizer a Arminda. Naquela manhã, possessivamente, Enid mantivera-se pelo quarto de Daniel, apesar da presença de Arminda, que já vinha visitando o rapaz desde havia uns tempos, sem nunca ter visto a gata antes... De repente, sucedeu algo inesperado:
-Aiiiiiiiii!!!!!! – gemeu Arminda, de repente. Sentada sobre a cama de Daniel, a rapariga acabara de ser atacada por Enid que, cheia de ciúmes em relação ao dono, reagira arranhando-a furiosamente, num movimento repentino, que nenhum deles esperava.
-Eu não te disse que ela não dá a mão?
-Mas de não dar a mão a atacar, ainda vai um bocado de distância! Safa!  Aiii! O meu braço! Dói tanto!
- Vai lá à casa de banho, lava isso, que a minha mãe já te ajuda a desinfectar!
Um largo arranhão, ensanguentado, era visível, agora, no braço da rapariga.
Passado um bocado, Arminda saíu, sob pretexto que eram horas de ir para casa almoçar.
-Ó, Daniel! – Chamou Eugénia, que acabar de pôr a mesa para o almoço deles.
- Sim, mãe!
- Anda, que a comida está na mesa!
Daniel saiu do quarto e dirigiu-se à cozinha.
-Então, filho, que foi aquilo, com a Enid e com a Arminda, há bocado?
- A Enid estava lá, sossegada, sobre a cadeira, e a Arminda estava sentada em cima da cama, ao meu lado.  Vai daí, a Arminda, que é atiradiça, e que está sempre a dizer que gosta de mim, chegou-se mais, para me dar um beijo... a Enid, que tinha vindo, sorrateira para cima da cama, por detrás de nós, sentiu ciúmes e zás! Atirou-se a ela! Depois escondeu-se!
-Esta bichinha tem cada uma! Coitada da moça! Ficou ali com um senhor arranhão!
- Deve ter ficado com pouca vontade de cá voltar, se tanto conheço a Arminda! Mas isso mostra que além de ter ciúmes, a Enid não gosta da Arminda! Vá-se lá saber porquê...
- Sabes, há bichos que se apaixonam de todo pelos donos ou donas... e é um problema, quando se trata de felinos! Todos eles são ciumentos... Lembras da história do leão, do Joseph Kessel? Um caso semelhante, mas com um leão!
-Sim ! Li essa história, há tempos... Tiveram de mandar abater esse leão, não foi?
-Exacto! Um caso sério!
-E alguns felinos são mesmo vingativos! Não se metam com eles, que eles retaliam! Até podem matar!
- Pois podem! E quando esta menina estiver com cio, veremos como se comporta!
- Pois! Se isto foi assim, agora, vamos ver se ela se mantém fiel e possessiva em tendo o cio! Ou se não desata a roçar-se dengosamente pelas visitas masculinas que cá venham!
- Uuuuiiii! Veremos!- Respondeu Eugénia, rindo. -Temos aqui uma gata especial, Daniel!
- Eu  bem sei! Tive um “feeling”* especial, também, quando a vi, no meio da ninhada, e por isso, a escolhi... Já ouviste falar de “energias”, mãe?
- Já! E sei que é verdade! Há uma energia especial nessa gatinha! Nunca vi nenhum bichano assim! Mas gosto imenso dela assim, sabes?
-Pois! Também eu! Aqui, não entra quem quer e como quer, nesta casa, com este animalzinho presente!
-É isso mesmo, Daniel! Ela é muito zelosa do seu território, do seu espaço e do dono!
- E ainda só nós é que a vimos com os olhos a refulgir com cores estranhas como faróis!
-Safa! Às vezes, nem parece uma simples gata! Parece como se nela houvesse uma alma de um ser estranho, e não uma felina doméstica!
- Também já percebeste, mãe?
-Sim, claro! Às vezes, estou para aqui sozinha, e sinto como que uma presença estranha a olhar para mim... viro-me , e é a Enid a fixar-me. Nunca desvia o olhar quando faz isso! Até custa aguentar esse olhar!
Daniel riu-se:- Já me fez isso a mim também! Percebes agora, porque lhe pus esse nome?
-Claro! Pudera! Essa gata é uma alma fora do comum dos outros animais!
- Mas quando quer, é um doce de gata!
-Sim! A mim, põe-se a piscar-me os olhos, com tal doçura, quando quer alguma coisa, que é o que eu chamo “fazer olhinhos doces”! E leva-me sempre à certa!
-Bichinha esperta! Anda cá Enid! Anda!- Chamou Daniel, com meiguice, vendo que a gatinha se mantinha perto da porta da cozinha, quieta, olhando-o.
Enid veio correndo, e esperou que Daniel lhe desse bocadinhos das sua comida, como sempre fazia às refeições.
Uma noite, estavam  Eugénia e Daniel dormindo, cada qual em seu quarto, quando Enid, ouvindo um ruído suspeito, abeirou-se da porta de entrada do apartamento, muito silenciosamente, e ficou à espreita, dissimulando-se por entre alguns objectos e móveis que ali estavam. O ruído continuou...  Daniel, que acordou nesse momento, foi pé ante pé verificar o que se passava. Alguém estava forçando a porta. Daniel tratou de acordar a mãe, o mais silenciosamente que podia, e pegou no telemóvel para ligar para a polícia. Entretanto, a porta cedeu e o assaltante tentou entrar... Não contava certamente com Enid que, percebendo o seu intento, se lhe atirou, saltando, de cima de um móvel, e se agarrou a ele com as patas de trás a cravar-se-lhe nas roupas, enquanto com as patas dianteiras e  com a boca, lhe atacava a garganta com quanta força tinha... Enid já havia crescido bem, e ficara com um corpo maciço, bem desenvolvido. O peso considerável da gata desequilibrou o ladrão, que caiu de borco, com a gata a traçar-lhe a garganta e acabando-lhe instantaneamente com a vida... A polícia, chamada entretanto, acorreu pouco depois. Dois agentes, que faziam a sua ronda ali perto, chegaram escassos minutos depois de o homem morrer às garras e dentes da gata. Depois de examinarem o homem, e constatar-lhe a morte física, trataram de interrogar os donos da casa, e concluíram, falando com Eugénia:
- Este homem vinha armado... A senhora conhecia-o?
- Não! Nem nunca o vi!
-Pois, minha senhora, nós já o tínhamos assinalado como um perigoso assaltante... – disse um deles.
-Pelos vistos, veio ter à casa errada para ele, e no momento errado! Deu-se mal! Quem o feriu assim?
-Foi a nossa gata Enid!-respondeu Daniel.- Enquanto eu acordei, com o ruído da porta a ser forçada, e tentei acordar a minha mãe, a Enid ocupou-se do assaltante, pois eu vi que ela estava à espreita ao pé da porta. Só tive tempo de ligar ao posto, aos vossos colegas... Entretanto, foi tudo muito rápido: ele conseguiu forçar e abrir a porta e a Enid atirou-se instantaneamente a ele! Ele desequilibrou-se e caiu, mas ela só o largou quando o viu morto!
-Valente gatinha! – disse o outro agente. – Em casos destes, costumamos abater os animais, por causa do dano a nível humano... Mas este animal merece ser conservado com vida, pois, graças a esta gatinha, este perigoso bandido não voltará a fazer nada contra ninguém! E, também, ela foi a vossa protecção! Merece continuar a sê-lo! Onde está a vossa gata? Não está visível...
-Ela costuma esconder-se das pessoas estranhas e das visitas... Ah! Cá está ela: anda cá Enid!- Disse Daniel. Enid foi chegando mais perto do dono, mas não se deixava tocar... rosnava, e recuava.
-Ainda bem que ela é assim! É sinal que é uma boa guardiã do vosso lar! Vocês tiveram sorte de a ter convosco! Foi a vossa salvação! Agora, devemos chamar os nossos colegas da peritagem, um médico legista, e também uma ambulância, para levar daqui o corpo, depois de feitos os exames necessários...
Passadas umas horas,  depois de tudo isso tratado, e de o corpo do bandido ter sido também levado, os polícias despediram-se, finalmente, deixando mãe e filho a sós. Eugénia, com os nervos em franja, por todo esse reboliço, cansada por tudo o que se passara e pela falta do sono perdido,  foi então para a cozinha, preparar uma cafeteira de chá, e torradas, para tomarem ela e Daniel, afim de lhes acalmar os ânimos, e a fome que sentiam ambos . Enid já estava ao colo dele, ronronando. Depois disso,  Eugénia, com a ajuda de Daniel, foi arrumando aos poucos, a entrada de casa, e limpando o chão, no sítio onde o sangue do assaltante tinha deixado rastos. Quando tudo já estava em ordem, e bem limpo, voltaram para as respectivas camas... Nesse dia, não iriam fazer nada mais, antes de dormir o necessário, pois estavam ambos a precisar de descanso. Enid trepou para a cama de Daniel, como sempre, enroscou-se junto ao rapaz, e ronronando, adormeceu.



FIM

Nely, Março de 2017

Advertência: Toda e qualquer semelhança com factos e/ou pessoas reais é apenas isso. Esta história é totalmente ficcional. A menção do nome de Enid Blyton é para dar um pouco de ênfase ao conto.O significado desse nome é real, segundo pesquisas efectuadas pela autora do conto. A história referida de Joseph Kessel também é real.