sábado, 4 de março de 2017

ALMA À DERIVA
(A Cantora)


Marinela passa, cantando baixinho, de olhar indiferente… Ultimamente, é quase sempre a mesma canção, que lhe vem à cabeça, como uma obsessão… O vestido branco, comprido, agitado pelo vento, e os cabelos longos e soltos, louros, volteando em torno do seu rosto, e que ela nem afasta da frente dos olhos… Vai andando, sempre em frente, como sabendo de antemão, onde quer chegar. De facto, é como se alguma voz dentro dela lhe dissesse para onde ir, e o lugar é sempre o mesmo: a praia.
No meio do seu percurso, cruzou-se com uma cigana conhecida, viúva, aproximadamente da mesma idade do que ela. Túlia vive nessa aldeia há vários anos… Há algum tempo que se conhecem, de facto. Mas ela quase nem olha, quando Túlia passa rente a ela, e a saúda… Marinela nem dá atenção… Túlia ainda se vira para olhá-la, mais uma vez, e faz uma prece em voz baixa, olhando então para o Céu: - Misericórdia, meu Deus!
Marinela segue o seu caminho, com as palavras da canção que lhe alienam o cérebro, e lhe afloram involuntariamente aos lábios…
Outras pessoas a vêem… De um pequeno grupo, ajuntado a um canto de uma das poucas  ruas da aldeia de pescadores, vozes lhe provêem.  Mas, da conversa deles, capta apenas uma ou duas palavras, e ela está tão alheada que nem dá importância, como se estivesse surda, e como se não visse essas pessoas, cujos rostos já conhece de sobejo… São pescadores, em tempo de repouso, a conversar ao sol, e as mulheres deles. Sabem que Marinela não está nos seus dias normais, e tendo lançado algumas saudações sem resposta, em sua direcção,  não insistem…  Têm todos pena dessa pobre mulher atormentada, que se tornou, aos poucos, mais uma deles, que entra em suas casas, frequentemente, prestando-lhes pequenos serviços, em troca de alguns bens essenciais. É assim que funciona a vida, nessa aldeia de gente humilde, onde são todos amigos, e formam uma pequena comunidade fraternal.
Entretanto, Marinela continua o seu caminho, e já vai longe, na direcção da praia, descendo uma escadaria de pedra…
Aquele grupo de pessoas continua falando ainda, durante um bocado.
Mas, afinal, quem é Marinela? Porque vagueia, assim, a cantar baixinho, pelas ruas de uma aldeia, à qual chegou, há alguns meses atrás, e onde foi acolhida gentilmente pela sua gente simples e fraterna?
Há quem, entre eles, afirme, de acordo com o pouco que ela lhes revelou, que, devido a um drama na sua vida, ela ficou assim… Que quase enlouqueceu… Também tem sido vista, nessa mesma praia, à noite, inúmeras vezes, com a mesma longa túnica branca, que lhe serve de vestido, em certas ocasiões específicas, e a entrar na água… mergulha e volta a sair, seguindo a andar, junto à rebentação, mas cantando alto… Mais do que uma vez, ao princípio, espreitaram-na, curiosos, das dunas, e viram-na fazer gestos, como uma verdadeira cantante, virada, ora para a praia, ora para a água. Com o seu canto fazendo eco na praia, e com o ruído do mar a servir de orquestra… Como se estivesse mais alguém, invisível,  assistindo ao seu canto melodioso, sentido e expressivo… Nas últimas semanas, a canção é quase sempre a mesma: uma balada mexicana, que fala de sofrimento, de grilhões, de correntes e de abandono… Há, entre eles quem conheça  essa canção1.
 O que é facto, é que Marinela anda quase sempre triste… e quase sempre só… Não se lhe conhece família… como se não a tivesse… e os seus passeios à beira-mar são sempre em noites de lua cheia…
Mas, então, leitor, como sabe ela, ao dirigir-se, ainda antes do entardecer, à praia, que vai estar lua cheia?
Que presença invisível a conduz assim? Desvendemos um pouco desse seu mistério…
Marinela ainda é uma mulher bela, com pouco mais de quarenta anos… É uma presença interessante, e que poderia ser sempre agradável, se não se desprendesse dela, em ocasiões cíclicas, esse ar alheado, indiferente… Se não se sentisse, além disso, esse frio desagradável,  ao chegar-lhe perto, nessas ocasiões… Há quem consiga ler, ou ver, a aura de outras pessoas… a dela, para quem já a viu, dizem que é escura, certos dias, mas não totalmente negra… Há quem a tenha ouvido de perto, a cantar perfeitamente, outras canções nostálgicas, sempre em espanhol… No entanto, ela fala perfeitamente em português…
Perto da praia, uns quantos metros acima das dunas, há uma pequena casa antiga, assente sobre as rochas, onde parece, à primeira vista, não viver ninguém… mas é habitada por uma outra mulher, já muito idosa… Marinela dirigiu-se para lá, bateu à porta e entrou, de imediato, sem esperar... Uma das janelas dessa casa, virada para o mar, está aberta, e a brisa fresca, marítima, agita o cortinado antigo de renda multicolor que a adorna e a resguarda de olhares indiscretos… Essa mulher idosa, por dentro da janela, observava, há momentos, Marinela, atentamente… Como cada noite, ela esperava já por Marinela… Essa anciã conhece-a muito bem, e chama-se, por sua vez, Eunice… A face de Eunice está sulcada de mil rugas miudinhas, como se fosse um pergaminho prestes a romper-se. Mas o seu olhar não é o olhar velado de uma velhinha muito idosa… pelo contrário: trata-se de um olhar vivo, arguto e inteligente. Tem uns olhos azuis claros, límpidos como água. Lê-se neles bondade, compaixão. Foi uma senhora bastante bela, outrora, e ainda se lhe notam vestígios dessa grande beleza, nos traços regulares do seu rosto… Os seus cabelos, outrora ruivos, cor de fogo, são agora completamente brancos, como neve, brilhantes e abundantes. Estão presos num volumoso carrapito que descai sobre a sua nuca, e com algumas madeixas soltas, à frente, que lhe emolduram, de modo natural e suave, o rosto. Traz uma rosa purpúrea de tecido, colada a um pequeno pente e presa nesse carrapito, num dos lados… Parece uma boneca sevilhana antiga, excepto na côr dos cabelos: Um xaile típico, de seda, de côr azul escura, e de longas franjas, lhe cobre os ombros, e um vestido  de seda claro, com flores estampadas em cores alegres, combinado com o xaile, num modelo extremamente feminino, com um folho largo em baixo, lhe cinge o corpo até aos pés. Eunice nunca se rendeu às sucessivas variações, nem aos ditames, da moda, ao longo do tempo… Preferiu sempre compôr seu próprio estilo, um tanto excêntrico, e mantê-lo. Eunice, além de ser ainda bela, é bastante alta e elegante. Não tem as costas curvadas, curiosamente… Se não fossem as rugas, e os cabelos brancos, pareceria jovem…
 Na aldeia, todos conhecem Eunice, e há também quem a visite, várias vezes, pois ela quase nunca sai de sua casa, mas nada lhe falta. Ela cuida de seu lar, conforme pode… Marinela também visita, diariamente, Eunice, e lhe presta a sua ajuda, em tarefas e recados que já são superiores às forças da anciã. Há quem já as tenha visto, a ambas, sentadas na varanda dessa casa, de frente para o mar… De facto, Eunice tem tomado Marinela a seu cuidado… Na aldeia, chamam a Eunice “a Grande Irmã”… Como se ela fosse a “Madre Teresa de Calcutá” do lugarejo… Algumas dessas pessoas já têm recorrido aos seus serviços… Porque Eunice tem bom coração, gosta de ajudar as pessoas… Eunice tem valido a Marinela, desde que esta chegou à aldeia… Tem alguns dons especiais, entre os quais o de ter visão das coisas espirituais ao seu redor, e saber discernir o que essas coisas são.
Entremos na sua pequena, mas muito limpa, arrumada e bonita casinha, e saibamos, com ela, um pouco mais, sobre a sua protegida… Eunice está à conversa com duas pessoas, que seguiram Marinela de longe. São familiares de aldeões do lugar, e estão de visita à aldeia… Pessoas bem intencionadas, que foram visitar Eunice, para tentar apurar o que se passa com Marinela, mas no intuito positivo de fazerem algo pela infeliz cantora. Sabem apenas o seu nome, e que não é desta aldeia… Perguntam a Eunice como foi que esta senhora veio a conhecer e a auxiliar Marinela… Eunice, conhecendo-os, e sabendo das boas intenções deles, pelas boas energias emanadas de quem a entrevista, e que ela captou logo, responde sincera e simplesmente:
-Marinela apareceu por aqui, quase morta de cansaço, de dor e sofrimento… Já lá vão mais de seis meses…
- Coitada! Como sucedeu isso?
 -Foi encontrada caída na praia, junto às rochas, inconsciente, gelada de frio, e encharcada, pelos pescadores locais, que vinham da faina, de madrugada, e trouxeram-na em braços para a minha casa… Estava em tal estado que quase não falava… Muito magra, sem forças… Cuidei dela com a ajuda de outras amigas da aldeia, como a Túlia, que é uma pessoa muito generosa… Marinela ficou aqui durante mais de um mês, de cama, com uma bronco-pneumonia, diagnosticada pelo médico que mandámos vir da vila mais próxima. Túlia foi incansável à sua cabeceira, dias e noites a fio, e também as outras amigas, à vez, para permitir que Túlia pudesse, por sua vez, descansar e também eu… pois a mim faltavam-me também, as forças, muitas vezes, para velá-la, nas longas horas em que permanecia febril e a delirar…
- E chegaram a saber donde provinha ela? Se tinha família?
 -Veio de muito longe…Do estrangeiro… Não tem mais ninguém… Soubemo-lo mais tarde, quando ela recobrou os sentidos, e que a febre a deixou… Adoptei-a, de certo modo… Adoptámo-la, entre todos… E ela a nós! Afeiçoámo-nos todos a Marinela… E ela a nós… Mas, no entanto, continua sendo livre das suas acções…

- E onde vive?Aqui consigo, Dona Eunice?
-Não vive comigo, actualmente…  Vive no outro extremo da aldeia, numa casinha que já não pertencia a ninguém, e que a ajudámos, entre todos, a repôr em condições de ser habitada… Mas Marinela vem por cá todos os dias… E às vezes, fica por cá, se lhe apetece, ou caso se sinta cansada… Não a prendo… Vem quando quer, quando sente a necessidade, ou se eu mesma precisar dela… Sabe que é sempre bem-vinda… Que farei sempre o que puder por ela, enquanto eu por aqui estiver…
- É muita gentileza da sua parte… E o que terá motivado essa vinda para cá, e nessas tão terríveis condições?
- Ela teve um grande desgosto amoroso… E uma grande desilusão artística… Ela é uma artista nata… mas pouco ou nada conhecida no nosso país… Cantou, e encantou, por outras terras, quando era jovem… Fizeram-lhe várias promessas de fama e de sucesso, que nunca foram cumpridas… E foi vítima de uma bruxaria muito forte… Tenho orado por ela, a Deus, e tentado ajudá-la, o mais possível, para que não enlouqueça…
-Então, essa senhora não é, realmente, louca?
 -Não! Não é louca! Claro que não!  Mas, certos dias, o feitiço que lhe foi lançado ainda tem força bastante para a dominar…
- Disseram-nos que ao passar por ela, certos dias, sente-se um frio gélido…
-Sim! E é por causa desse feitiço que lhe foi lançado, que se sente, nessas ocasiões, um frio gélido nela…
-Coitadinha!
-E o sofrimento, que ela demonstra, nessas ocasiões, lhe provém de ainda não ter conseguido curar-se totalmente do desgosto que a consome…
- E o que a Senhora acha que poderíamos fazer por ela, para ajudá-la? Levá-la a um psicólogo, talvez?
- A Marinela precisa de libertação, de carinho, amizade, ou até de amor… E isso não vem com consultas de psicologia, desculpem-me a franqueza… Com a minha idade, e a minha experiência de vida, conheço o bastante da alma humana, e da própria Marinela, também, nesses meses de lidação…Ela precisa também, se ainda fôr possível, do reconhecimento público, respeitante ao seu verdadeiro e grande talento… Pois só assim poderá curar-se totalmente…
- A Senhora, Dona Eunice, deve ter razão, certamente!
-Mas do que ela precisa, sobretudo, é de entregar-se nas mãos misericordiosas de Deus, para que os espíritos maus, que a têm querido destruir, a deixem, de vez, e que seja completamente e efectivamente livre… Cantar alivia-lhe, todavia, o sofrimento…
 - Então, e se alguém tentasse ajudá-la, pondo-a a cantar para a população local, para começar, por exemplo, e mais tarde, em público, ou num estabelecimento conhecido? Não seria bom para ela?
- Talvez! Se gostassem de a ouvir, e se quisessem que ela actuasse, para um público um pouco limitado, ao princípio, mas sem lhe prometerem coisas impossíveis… poderia ser que ela, sentindo-se realmente apreciada, se fosse recuperando…
- Temos uma ideia, ou melhor, um plano, para essa ajuda:Vamos juntar umas quantas pessoas, da aldeia, e vamos vê-la actuar na praia, esta noite, sem ela dar por nós… De modo a que ela não se sinta incomodada… Só um pequeno grupo… Se gostarmos do seu canto, aplaudiremos no fim, e veremos a sua reacção… Mas não lhe diga nada ainda…
- Tenho a certeza que vão gostar! Ela canta mesmo bem: com sentimento genuíno, com alma! Prometo que nada lhe direi… Eu mesma irei vê-la, também, quando estiver a cantar, ao luar… Ela não começa a cantar antes de que a lua illumine o mar…
-Então, está combinado! Esta noite vamos vê-la! Até logo!
-Até logo, amigos!
E a conversa fica por aqui… Eunice despediu-se das suas visitas… Não quer ficar muito à vista, na praia, por enquanto. Nem da própria Marinela, que antes dos visitantes terem ali chegado, já havia saído para a praia, nem do reduzido público, que se vai juntar, secretamente, nas dunas… Eunice tem as suas próprias razões…
Por várias vezes, houve alguns dos habitantes mais jovens da aldeia que se atreveram a espreitar Marinela, porém entenderam, na sua sinceridade e simplicidade de alma, que estavam a desrespeitar uma dor que não compreendiam, de início, mas que os impressionava... Compreenderam que Marinela precisava de estar sozinha nessas horas de delírio junto ao mar... Pois ouviram-na nessas várias vezes, falar antes de cantar, dirigindo a sua voz para o mar, em tom bastante audível... Chegaram a ir falar com Eunice, e confessar o que haviam feito sem que Marinela os visse... Eunice explicou-lhes o que se passava com Marinela. E aos poucos foram percebendo que Marinela fazia isso afim de se ir libertando daquilo que a fazia sofrer. Eunice viu desde o princípio as correntes espirituais, os grilhões dessas correntes, que Marinela arrastava consigo, e de que Marinela necessitava libertar-se... A própria Eunice  foi-se apercebendo de que, ao Marinela cantar, os grilhões que a aprisionavam iam afrouxando, a pouco e pouco... No entanto, e apesar de muito interceder em oração a Deus pela sua amiga, Eunice entendeu rapidamente que à própria Marinela cabia a decisão de se entregar a Deus, com oração, para que a sua cura começasse, e prosseguisse. Eunice quer dar tempo a Marinela para estar a sós na praia, e ambientar-se, como a cada vez... Ela sente que Marinela necessita desse ritual de vaguear descalça pela praia, uns momentos, antes de elevar a sua voz na direção das ondas, afirmar-se, como pessoa que se reergue após uma queda... E depois, cantar, com quanta alma tem, para um destinatário que se encontra para lá do mar... Lá longe, não se sabe bem onde ao certo, e de onde Marinela veio, ela mesma...
Uma hora passou, e a noite de Verão dá ao lugar um encanto especial... poucas luzes, das janelas da aldeia, se avistam agora a brilhar... Somente a luz do velho farol, num pequeno promontório próximo, lança um feixe de claridade intervalada sobre o mar... A lua irrompendo no céu, lança, nesse momento, por sua vez, miríades de manchas prateadas sobre o mar, e alguma claridade, sobre a praia envolta em sombra.
No alto da duna, a casinha também tem a luz acesa... Eunice, envolta num xaile de lã, sai discretamente pelo outro lado da casa, prestando atenção ao pequeno caminho pedregoso que desce até às dunas. Quando lá chega, já um pequeno grupo, formado pelos vários aldeões e pelos visitantes, está sentado na areia das dunas, de modo bem dissimulado. Até Túlia quis marcar presença, para assistir ao espectáculo solitário de Marinela, que reaparece agora, devagar, quase junto à água. Marinela, sem desconfiar de nada, entregue à sua dôr, concentra-se, vira-se para o mar...
A sua voz faz-se então ouvir, falando de modo bem claro, nesse momento:
- Si me escuchas, en donde quiera que estés, sabrás que me hás herido el alma profundamente, amor mío! Y que yo canto, como siempre, junto al mar, para que el viento y las olas se lleven hacia tí el eco de mi voz, y te enteres de una vez y por siempre, que, hasta hoy, he sufrido el amargo dolor de tu partida, de tu traición! He querido perdonarte, he querido olvidarte... y aún no lo he logrado totalmente! Pero te juro que lo intentaré! Una y outra vez, hasta que lo logre de una vez! Que me libere hasta de tu recuerdo!2
Marinela começa então a cantar, meio virada para as dunas, em espanhol, como sempre:
- “Yo quiero luz... de luna, para mi noche triste... para sentir, vivida, la ilusión que me trajiste...[...] si llevo tus cadenas, arrastrando en la noche callada, que sea plenilunada, azul, como ninguna... pues desde que te fuiste... no he tenido luz de luna...”3
A voz vibrou, profunda, pungente, na noite serena, interpretando de modo bastante sentido, a música de Javíer Solís3 ... o mar fez eco às suas palavras, cantadas à capela... Eunice, escondida atrás da duna, um pouco atrás dos outros aldeões, observou a cena... Viu Marinela cantar, dançar, dobrar-se, cruzar ambos os braços envolvendo o peito, chorando, enquanto cantava... Ela viu a aura da cantora, ainda escura, envolvendo-a... e viu também mais uma vez, os grilhões das correntes espirituais que a prendem realmente... Atrás, e à volta de Marinela, agita-se uma sombra negra que só Eunice consegue distinguir... Mas Marinela continua a cantar... Desta vez, uma outra canção, de outro cantor, mas espanhol e não mexicano:
“Como buscan las olas, la orilla del mar, como busca un marino, su puerto, su hogar, he buscado en mi alma, queriéndote allar... y tan solo encontré... mi soledad”4...
A alma de Marinela, nessa noite, está cheia de canções, canções magoadas, que afloram ao seu pensamento e aos seus lábios, deixando atónitos os que a observam e a escutam, de lágrimas nos olhos:
“A cara ó cruz, así se gana ó se perde un amor, a cara o cruz, hoy, un te quiero, y mañana un adiós..”5
“Procuro olvidarte, siguiendo la ruta de un pájaro herido[...]6
As correntes que Eunice vê, acorrentando a alma de Marinela, começam então a quebrar-se, a pouco e pouco, não escapando o fenómeno aos olhos atentos de Eunice... A sombra malévola afasta-se dela em direcção à água, e acaba por desaparecer, finalmente, nas ondas... Marinela, entretanto, continua com outra canção:
“[...]Pero te fuiste, y que regressabas, no me dijiste, y sin más nada... porqué? No sé... Pero fué así... así fué... Te brindé la mejor de las suertes... me propuse no hablarte ni verte... Y hoy que has vuelto, ya vés, solo hay nada...Ya no puedo, ni debo quererte... Ya no te amo... Me he enamorado... de um ser divino, de un buén amor... que me enseñó a olvidar, y a perdonar... ahahhhaha ahahahahaha....”7
 Até mesmo Túlia, que veio ver Marinela, sorri, ao ver que a cantora parece mais aliviada, a cada nova canção... Túlia continua orando baixinho, pedindo:
- Senhor: liberta-a de todo esse mal! Nós não sabemos fazê-lo, e nem podemos... mas Tu podes! Liberta-a, agora, Senhor, que a sua alma se virou para Ti! Que reconheceu em Ti o seu Salvador!
Pois Túlia sabe que, no seu desespero, Marinela já fez algumas vezes preces, a pedir a Deus que a libertasse...
Marinela cessou agora seu canto... cansada, avança lentamente para as dunas, enquanto um múltiplo e caloroso aplauso ecoa na praia, surpreendendo-a, pois que, entregue à sua dor, não deu pela presença daqueles que agora considera seus amigos... Lâmpadas de vigília estão agora acesas, e eles envolvem-na com sorrisos calorosos e exclamações sinceras:
- Bravo Marinela! Foste maravilhosa! – Chico, o pescador mais jovem da aldeia, que a admira muito, não se conteve.
- Adorei ver-te, e escutar-te,Marinela!  Que talento! E que sentimento! – Exclama Lena, uma jovem da aldeia,  e a que mais a aplaudiu.
- Viva a nossa amiga Marinela!
-Grande cantora, pá!
-Grande mulher! Viva!- São as vozes um pouco rudes, mas sinceras, dos pescadores que a admiram e a respeitam profundamente.
- Marinela, vem cá, querida! Não apanhes frio... – É, agora, a voz solícita de Eunice, a qual chegou junto dela, e lhe passa, de imediato e gentilmente, um xaile florido por sobre os ombros, e lhe afaga o cabelo desalinhado pela aragem marítima, ternamente.
 Marinela sorri, de lágrimas nos olhos e, comovida, agradece aos seus amigos, olhando ora para uns, ora para outros:
-Obrigada, Chico! Obrigada, Eunice! Obrigada, Lena, Mário! Zé! Olinda! Obrigada a vocês todos! Meus queridos amigos! Vocês é que são grandes almas! Obrigada, Túlia! E perdoem-me, todos, se não vos falei, esta tarde! Ia desorientada! Perdão! Se não fossem vocês todos, que seria de mim?
Tudo isto foi dito por entre vários abraços, que lhe são dados por esta gente simples, mas de corações sinceros, e lágrimas de gratidão, que lhe saltam dos olhos comovidos ...
 -Agora, vamos todos beber um copito, à saúde e ao talento de Marinela! - Propõe Jaime, o dono da pequena taberna da aldeia. - Por conta da casa!
 Viram, então, todos, costas à praia, enquanto voltam a subir pelo caminho empedrado, de regresso à aldeia, no meio da qual está a taberna “ O Bom Cantinho”...
 Eunice vira-se, uma última vez, e olha para o mar... O seu olhar claro de vidente vê agora que as grilhetas que acorrentavam Marinela, e que desvanecem, a pouco e pouco da areia,  estão agora a ser levadas pelas ondas, que lavam a praia, deixando a areia lisa, sem pegadas, nem marcas algumas... A sombra demoníaca desapareceu, graças a Deus! Já não se sente o incómodo frio envolvendo a artista.
 Passaram mais dois meses...  Marinela cantou mais um par de vezes, junto ao mar, do mesmo modo, mas um pouco mais aliviada a cada vez... e cada vez mais aplaudida... Foi-se acostumando à presença dos seus amigos na praia, durante esse ritual de libertação... Marinela prepara-se, agora para actuar, novamente, na praia, mas desta vez, num palco montado ao pé das dunas, entre o promontório do farol, e a aldeia... Foi ideia dos seus amigos... Quiseram render uma homenagem ao seu talento, e organizaram esse  espectáculo para a data da festa da aldeia. Alguns dos jovens sabem tocar guitarra, acordeão... Vão acompanhar a sua bela e forte voz, com o som dos seus instrumentos... Lena, que também tem bastante jeito e uma voz bonita, servirá para fazer-lhe coro, juntamente com Olinda... Marinela concordou em cantar com e para eles, a cada festa anual, e em todas as ocasiões em que seja necessário, sem custos para eles, conforme ela própria impôs, em agradecimento pelo carinho e amizade de que é alvo... O seu sorriso é caloroso, ao cumprimentar os seus amigos, de passagem, a cada dia em que circula pela aldeia... e os seus olhos já não têm expressão de sofrimento... Já não passa indiferente, embora saia frequentemente, a caminho do mar, ou da casa da sua grande amiga Eunice... Eunice, por sua vez, examina a sua aura, a cada dia,  e distingue várias cores, como um arco-íris, a envolvê-la... Eunice sabe que a cura de Marinela está acontecendo ainda, dia após dia... Sabe que Marinela está a reaprender a ser feliz...
Eunice também sabe, tal como todos, na aldeia, que o coração de Marinela tem agora um novo dono: a cantora entregou a sua vida a Jesus, em oração, na presença de Eunice e de Túlia, que a ajudaram a converter-se ao Senhor...
 Marinela resolveu, também, permanecer definitivamente na aldeia. Sente-se agora feliz ali, e não deseja mais nenhum lugar para viver. Continua a prestar os seus serviços nas casas dos seus amigos, ajudando a limpar as casinhas, pintar, tratar das crianças da aldeia, ensinar-lhes algumas coisas, cuidar de alguém que esteja doente... ensaiar canções com os jovens, e ainda faz roupas e agasalhos de malhas, rendas, para ganhar o seu sustento... Continua a apoiar Eunice, a cada dia... e a receber, em troca, todo o apoio e carinho, da sua idosa, mas solícita amiga. E de todos os seus amigos da aldeia, que se tornaram a sua família escolhida, e sem os quais já não saberia estar.


FIM

Notas:
1 – Parte de uma canção de Javier Solís, intitulada “Luz de Luna”.
2- Escrevi em espanhol, originalmente para dar mais ênfase à narrativa. Assumo, assim, que Marinela é de origem meio espanhola. Tradução: “Se me escutas, onde quer que estejas, saberás que me feriste a alma profundamente, meu amor! E que eu canto, como sempre, junto ao mar, para que o vento e as ondas levem consigo e até ti, o eco da minha voz, e fiques a saber, de uma vez e para sempre que, até hoje, sofri a amarga dor da tua partida, da tua traição! Quis perdoar-te, quis esquecer-te... e ainda não o consegui totalmente! Mas eu juro-te que vou tentar fazê-lo! Uma e outra vez!Até que o consiga de uma vez!
3- Trata-se precisamente da canção citada na anotação da alínea 1.
4- Parte de uma canção de Julio Iglesias, intitulada “Gwendoline”.
5- Parte de uma canção do cantor  José Velez, intitulada “A Cara ó Cruz”.
6- Outro trecho, de uma outra canção de José Velez, intitulada “Procuro Olvidarte”.
7- Parte de uma canção de Isabel Pantoja, intitulada “Asi Fue”.
8- Nota extra: Esta história é obra de ficção completa, tanto nos factos como nas suas personagens.




Sem comentários:

Enviar um comentário