sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Conto: O MENDIGO




O MENDIGO


Há casos, neste mundo, que são verdadeiras singularidades... Ou, se quiserem, podemos chamar-lhes prodígios. Bons ou maus? Cabe a cada um, que deles ouve falar, o ajuizar a esse respeito... Certo, é que eles são contados, porque certamente, ocorrem... E, para ajuizar, é como diz o nosso povo: “cada cabeça, sua sentença”!
Por mim, posso dizer que há realmente histórias que nos são contadas e que nos deixam a pensar: Serão verídicas? Serão fruto da fantasia de quem no-las contou? Algumas histórias foram-me, durante a minha vida, contadas, com toda a sinceridade, pelas pessoas a quem elas sucederam, ou no caso de outras, pelas pessoas que delas ouviram falar...
Com este preâmbulo, passo a contar-vos algo que a mim me foi transmitido pela pessoa a quem isso ocorreu. Conto-o, por encontrar bastante singularidade no seu conteúdo.
Numa vilazinha dos arredores da Nazaré, vivia alguém que cedo começou a ter dificuldades na vida. Essa pessoa, é ainda hoje, considerada por mim como fazendo parte do rol das minhas verdadeiras amizades. Há muitos anos, porém, que não a vejo, nem consigo saber nada a seu respeito. Contou-me, ela própria, a pequena história que me propûs, por minha vez, contar-vos. Protegerei, no entanto, a sua verdadeira identidade, trocando-lhe o nome, como é lógico. Dar-lhe-ei o nome de Júlia.
D. Júlia era uma pessoa de origem humilde. Vivia numa casa térrea, pertencente à sua família.  Ela era jovem, quando lhe sucedeu aquilo que, muitos anos volvidos, me narrou. Os tempos eram difíceis, naquela época. Tempos da Segunda Guerra Mundial. Essa guerra afectou de muitas formas vários países da Europa. O nosso país também sofreu com isso, embora não participasse na guerra directamente. Contam os mais velhos que passaram muitas privações, devidas ao racionamento, à escassez de alimentos básicos, e de várias outras coisas, que deixaram de se encontrar no comércio.
Estando D. Júlia, certo dia, em sua casa, cuidando de seus afazeres, bateram-lhe à porta. Quem seria? Ela não costumava receber visitas... Ela foi, no entanto, de imediato, abrir a porta, saber do que se tratava.
Deparou-se com um homem ainda jovem, de aspecto pobre, mas limpo. O seu cabelo escuro era comprido e liso, como se fosse o de um hippie. Mas o desconhecido envergava roupas masculinas de uso corrente, como todos os homens que se viam naquela época. Usava barba, era ligeiramente moreno, olhos escuros. Olhou-a nos olhos, com ar humilde. O seu rosto pareceu um pouco familiar a Júlia. Ele falou, de modo simples, mas directo, e educadamente:
- Bom dia, minha senhora! Desculpe-me por incomodá-la. A senhora poderia ter a bondade de me dar algo de comer?
Júlia, que o olhava, também de modo franco e sincero, disse-lhe:
Bom dia! Dê-me só um minuto, se faz favor!
Dizendo isto, virou-se, e dirigiu-se para dentro de casa. A porta que manteve aberta dava para um largo compartimento que servia de sala e cozinha em simultâneo. Havia ali uma mesa e algumas cadeiras, provando ser esta um local de refeições. Júlia, de modo rápido, apanhou de sobre a mesa as duas únicas coisas que de que dispunha como recursos para esse dia: um bocado de pão e uma moeda de baixo valor. Nada mais tinha disponível.  Com essas duas coisas, dirigiu-se de novo  ao pedinte que ali ficara à porta.
- Só tenho este bocado de pão, e esta moeda. Qual destas duas coisas prefere o senhor que lhe dê?
-Minha senhora- respondeu o desconhecido, continuando a olhá-la directamente nos olhos, e com aquele seu jeito humilde de falar - quem pede não escolhe.
Júlia deu-lhe então a moeda. Ele agradeceu. Virou então costas e foi embora.
Júlia fechou a porta, regressando ao interior de sua casa. Ao pousar sobre a mesa o pedaço de pão, algo lhe chamou a atenção: sobre a mesa havia outra moeda, no mesmo lugar, precisamente, de onde ela apanhara a primeira, que acabara de entregar à mão do mendigo, como esmola.
Estando ela sozinha em casa, ninguém poderia ter posto, entretanto, nova moeda sobre a mesa. E ninguém havia presenciado aquela ocorrência... Júlia não queria acreditar naquilo que via... Como poderia estar ali aquela moeda, agora, se ela tinha a certeza de não ter mais nenhuma, e acabara de dar a única que possuía àquele mendigo?
Correndo, voltou à porta e abriu-a. Olhou lá para fora. Não havia ninguém na rua... Correu até à esquina. Ninguém ali, e nem ao longe, sequer...  Olhou para todos os lados. A rua, porém, estava completamente deserta!
Júlia voltou segunda vez para dentro, fechando de novo a porta. A moeda continuava ali, sobre a mesa. Não era uma alucinação!  Boquiaberta, apanhou a moeda, virou-a e revirou-a na mão. Era real! Voltou, pensativa, aos afazeres que interrompera... Não deixava, porém, de pensar no sucedido... Nunca lhe havia aconcedido algo assim antes! E outra coisa: quem era aquele homem? Pobre de aspecto, mas tão educado, e com um falar tão humilde quanto gentil... Tão sincero naquele olhar directo, mas ao mesmo tempo, penetrante... O seu rosto parecera-lhe, além disso, um tanto familiar...  Mas como? Se nunca estivera com ele antes, nem o vira ali, pela vila? Tê-lo-ia visto na rua, ou cruzado com ele alguma vez? Não se lembrava de tal coisa! E porque voltara a moeda a aparecer sobre a mesa? Mistério!  Depois de muito matutar  sobre isso, dirigiu-se ao seu quarto. No corredor que lhe dava acesso, havia um quadro, numa das paredes, representando Jesus. Era um daqueles quadros muito populares entre o povo português daquela época. Júlia olhou para o quadro. Jesus parecia estar a olhar específica e directamente para ela, naquele momento. Então, Júlia compenetrou-se do seguinte: o olhar d’Ele, retratado naquele quadro, era exactamente o mesmo, assim como a expressão de todo o seu rosto, ao que ela captara no rosto e no olhar do mendigo desconhecido que ali estivera à sua porta, momentos antes! Até a barba e o cabelo comprido, eram iguais, do mesmo tamanho, da mesma côr! Espantada, olhava sem cessar o quadro, e julgou compreender então: Jesus visitara-a, aparecera-lhe  dessa forma singular! Ele pusera-à prova! E devolvera-lhe, de modo milagroso, a moeda que ela lhe entregara! Essa só havia servido para testá-la!  Pois, para que precisaria Jesus do seu tão pouco e único dinheiro? Se Ele era Deus! Júlia acabara, isso sim, de assistir a um milagre!
Ao longo da sua vida, sucederam a Júlia  outras ocorrências de teor extraordinário, dentro do que se podem também considerar prodígios, e dos quais ela me contou, noutras ocasiões , algumas, semelhantes a esta que aqui vos deixo. Inclusive, ela veio a descobrir, algum tempo depois, que era “médium”. E então, ainda mais se convenceu de que Deus permitia que lhe sucedessem, ou que presenciasse, factos não comuns, para com eles lhe transmitir algo, a cada vez.
 O certo é que a minha amiga, a “D. Júlia”, nunca mais esqueceu aquele encontro, com aquele pedinte tão singular, nem a sua frase: “Quem pede não escolhe!”...
Grande verdade!
E ela ficou doravante convencida de que esse pedinte era, de facto,  o próprio Senhor Jesus Cristo!

FIM


Nely, 1 de Fevereiro de 2018

( Do meu livro de Contos Portugueses "Transcendências")


Sem comentários:

Enviar um comentário