sábado, 28 de outubro de 2017

Conto - Romance Ao Anoitecer

ROMANCE AO ANOITECER


Laura saiu da escola secundária que frequentava, e   foi afastando-se dali, ao mesmo tempo que se despedia das colegas, de forma evasiva, mas um tanto apressada. Dirigiu-se, a passos rápidos, rua adiante, para a beira-rio.
Ao chegar lá, andando pelo jardim antigo, viu, a alguns metros  dela, duas colegas suas,  de outra turma. Olhavam na sua direcção, com curiosidade, e falando entre si... Ela apercebeu-se da surpresa delas,  ao ver Martinho, que vinha ao seu encontro, conforme haviam ambos combinado, horas antes. Não passava despercebido, com a sua silhueta alta e magra, os cabelos castanhos ondulados, um bocado crescidos, a darem-lhe nos olhos,  por causa da aragem, e o seu andar balanceado. Ora, ele vinha na sua direcção, vindo do lado oposto do jardim, avançando, rapidamente,  a sorrir para ela,  e não havia maneira de elas não o verem, pois ele já estava a chegar perto.
- Merda!- pensou Laura.- Aquelas gajas viram-me e estão vendo-o a ele... De certeza que vão andar rondando por cá, para espiarem-me e inteirarem-se de tudo... amanhã, já a escola toda vai saber disto! Merda!
Laura calculou  o porquê das suas caras surpreendidas, perante a chegada de Martinho perto dela: Milene e Teresa, tal como muita gente, na escola secundária, haviam sabido do seu anterior e primeiro namoro a sério com outro rapaz.  De facto, Laura só tivera,  antes, um primeiro namorado. Isso havia sido facto sabido e conhecido de toda a gente, uma vez que eles saíam juntos, à vista de todos, e também, Leandro costumava ir esperá-la, durante esse tempo em que haviam namorado, ao portão da escola, à saída das aulas. Já naquela altura, várias colegas haviam dado largas à cusquice, haviam espiado, e comentado... e até se haviam atrevido a fazer-lhe perguntas indiscretas... Isso arreliava fortemente Laura, que detestava esse tipo de coisas...
 Agora, passado mais de um ano de tudo ter acabado entre eles, a história estava a repetir-se.
Recentemente, conhecera Martinho... Nos primeiros dias, foi apenas um rosto novo, recém-descoberto. Depois, começaram a cruzar mais um com o outro. Laura percebeu que Martinho a seguia disfarçadamente. Aparecia, como se viesse de nenhum lado, de repente. E ali estava, perante ela, com um sorriso atrevido e irresistível. Não sabendo bem, inicialmente, o que sentia por ele, fora, no entanto, tomando gosto a esses encontros súbitos e inesperados. Conversavam, embora pouco, a princípio. E finalmente, haviam combinado mesmo um encontro a sério, junto ao rio, ao anoitecer... As colegas haviam-na certamente seguido... pois, por várias vezes, antes, ela passeara sozinha, junto ao rio, a qualquer hora da manhã ou da tarde, sem cruzar, sequer  com qualquer delas.
E ali estava ele, agora, de sorriso aberto, a olhar para ela, e a cumprimentá-la:
- Olá, Laura! Como estás?
- Olá, Martinho! Tudo bem?
-Sim! Vamos dar uma volta?- Sugeriu, baixando a voz.
- Claro! Para isso viemos!- Respondeu ela, também em tom mais baixo, para que só ele a ouvisse.
Continuaram, pois, a falar baixo:
- Para estarmos juntos, um bocado, como combinado...- reforçou ele.
- Sim! Exactamente! Não ligues àquelas duas cuscas, que nos andam espiando. São minhas colegas de escola, mas estão feitas umas indiscretas.
- Eu topei-as, sabes? Que tal se saíssemos já da vista delas, hã?- Martinho piscou-lhe o olho, com um dos seus sorrisos atrevidos, ao dizer isto.
-Boa ideia! Isso mesmo! – Concordou Laura, a sorrir,  e em tom cúmplice.
Laura e Martinho iam falando entre si, ainda em voz baixa. Foram andando, lado a lado, e afastaram-se o mais possível do centro do jardim. Procuraram um banco para sentar-se, num recanto mais discreto.  Queriam estar longe da vista daquelas duas, e mais à vontade. E como a hora avançava e já anoitecera, podia ser que desistissem de espiá-los, e fossem embora...
Finalmente, encontraram aquilo que procuravam: um banco oculto por detrás de um canteiro onde cresciam gladíolos, de tal tamanho e com tal profusão, que de tão apertados que estavam, nada se via do lado oposto. Era o ideal para eles, protegendo-os de olhares indiscretos. E, ainda para mais, tendo a noite já caído. Estava-se em finais de Outubro. Os dias já eram bem mais pequenos, anoitecia cedo... Os candeeiros do local estavam já acesos, enchendo o ambiente de uma luz amarelada, deixando muito do espaço ajardinado na penumbra. Fazia já um tanto frio.
Sentaram-se. Martinho, chegando-se mais contra ela,  passou-lhe o braço por cima dos ombros, dizendo, com voz suave:
- Que bom que estamos sós, finalmente! Vem cá, querida!
Ao mesmo tempo, inclinou-se, acariciando-lhe o rosto e, fechando os olhos, beijou-a. Laura tremia, de frio, e de ansiedade. Ele notou-o, certamente, pois apertou-a mais contra si, continuando a beijá-la. Havia calor, naqueles braços masculinos musculados, naqueles lábios que tomavam os seus, sem pressa, com doçura.
Laura fechou, também ela, os olhos,  entregue àqueles beijos famintos, que ambos trocavam, esquecidos, por momentos, do mundo que os rodeava... Naquele momento, não queriam saber de mais nada, senão daquele novo romance, que começava, ali, entre eles, ao anoitecer...
Laura estava feliz, nessa tarde: conseguira, por fim, esquecer e enterrar a mágoa profunda que a havia atingido, com o final triste do seu primeiro amor. Agora, os braços compridos de Martinho envolviam-na, sensual e apaixonadamente. Laura sentiu-se de novo amada, e também ela, apaixonada de novo.
Martinho era um belo rapaz: alto, magro mas musculado, olhos verdes e cabelos castanhos ondulados e rebeldes. Possuidor de uma voz suave, que lhe falava muito docemente: Martinho dissera-lhe já antes, e agora repetia-lho, entre beijos, que a achava linda. E reforçava agora esse elogio, acrescentando que a achava também inteligente. E diferente. Na verdade,  Laura tinha cabelos ruivos, compridos e entrançados, olhos cor de mel, algumas sardas na cara, e um olhar expressivo.  Era  um pouco mais baixa do que Martinho. E tinha um corpo curvilíneo, um pouco roliço.
Ela quis saber o porquê da insistência dele, nessa sua opinião :
- Em que é que me achas diferente, miga? Diferente, como?
Ele respondeu de imediato, sem deixar da abraçar:
- Querida: Tu não és como as outras raparigas que conheço. Eu vejo-o nas tuas atitudes. Elas são, na generalidade, cuscas. Tu detestas isso. Tu és discreta, ao passo que muitas delas dão nas vistas. E tu não estás nem aí p’ras tolices delas. Tens personalidade... Enquanto que a maioria dessas raparigas, que andam na mesma escola que tu, são umas “Maria vai com as outras”... Parece que só se sentem bem sendo ou parecendo todas iguais. Até metem nojo!
-Tens razão, Martinho! É isso mesmo!
- Gosto que sejas assim! Gosto da tua inteligência, da tua vivacidade, e também gosto do teu rosto e do teu corpo. És bem feitinha! Tens belas curvas! E isso atrai-me! Põe-me louco! E tens um olhar que entra por mim adentro... fora do vulgar!
- Eu também gosto da tua maneira de ser, do modo como me tratas... Do modo como falas comigo. E também eu te acho lindo. E doce!
Martinho riu-se, docemente, feliz. Voltou a beijá-la. Depois, disse:
- Ambos gostamos um do outro. Nada é mais importante, pois não, miga? Estás aqui comigo, agora. E estamos ambos felizes, não é verdade?
- Sim, Amor! Eu estou feliz! Muito!
- Também eu! E gosto que me trates por “amor”! Faz com que me sinta amado! É tão bom!
No decorrer dos dias que se seguiram a esse encontro, esse amor apaixonado foi envolvendo-os mais e mais... Quando estavam juntos, buscavam lugares ermos e desertos, tais como a praia, para estar juntos. Afastavam-se de onde houvesse gente. Queriam acima de tudo, estar a sós um com o outro. Começaram a ir para casa dele. Assim, além de ficarem mesmo sós, estariam realmente a salvo de olhares indiscretos. Martinho avisava com antecedência o seu irmão, para que este não estivesse por lá, quando ele levasse para lá Laura. A mãe deles, viúva não vivia ali, naquela casa: Tinha outra habitação, e deixara essa para os dois filhos adultos. Martinho queria poder estar completamente a sós com ela, que ninguém viesse perturbá-los. Numa dessas vezes, Laura entregou-lhe a sua virgindade. Depois disso, fizeram amor várias vezes. Davam-se bem, inclusive na intimidade. Laura aprendeu a gostar desses momentos íntimos. Aos dezanove anos, sentia-se apreciada, amada. Sentia que se ia tornando mais mulher, nos braços de Martinho, e sob as suas carícias.
O tempo foi passando. Chamado à inspecção militar algum tempo antes, Martinho havia adiado a sua prestação pessoal, para só ser recrutado após ter concluído os seus estudos. Como ainda não conseguira um trabalho a seu gosto, Disponibilizou-se então para cumprir o serviço militar. Por conseguinte, teve de ausentar-se da cidade, afim de ir a uma nova inspecção. Então, foi recrutado, finalmente, para a Marinha de Guerra, devido ao seu excelente físico, e a saber nadar perfeitamente.Voltavam a ver-se  sempre que ele podia vir a casa. Escreviam um ao outro, ou telefonavam-se. As saudades eram muitas. Quando Martinho vinha a casa, de licença, amavam-se, fechados durante horas a fio, no pequeno quarto da casa de habitação de Martinho, como antes. Na escola, já toda a gente sabia desse namoro, pois Martinho ia também esperar Laura ao portão, com a sua moto, na qual costumava levá-la a dar voltas divertidas. Laura prosseguia os seus estudos, com o afinco possível, afim de preparar-se para a sua situação profissional futura. Queria ser esteticista.
Mas a Vida prega partidas... Destacado para os Açores, em cumprimento do dever, passado quase um ano, e porque o seu  serviço militar estava, entretanto, quase a chegar ao fim, Martinho buscava, por lá,  activa e diligentemente, um trabalho que o ajudasse a resolver a sua situação, para não ficar no desemprego. Mas era difícil... Na cidade deles, no sul, também não havia grande futuro para os jovens... Ele precisava de ter um trabalho, e de lutar, para criar condições afim de poder ir buscar Laura a Portugal Continental, e casarem. Queria ficar com ela, ou nos Açores, ou em qualquer outro lado, onde ambos pudessem ter a sua vida juntos, e o seu cantinho. Empregos eram escassos... e o que surgisse, dentro das capacidades deles, serviria para lançar os alicerces de uma vida futura, a dois... Motivado através de algumas formações práticas disponíveis no próprio barco, Martinho aprofundou  e desenvolveu uma especialidade de que gostava, ligada aquilo que estudara: electrotecnia. Já era um começo. Em suas cartas, que não eram muito grandes, ele contava essas coisas a Laura, que também lhe escrevia contando como iam as coisas com ela.
Passaram mais seis meses... e no último mês, silêncio repentino, da parte de Martinho... nada de notícias... Nem o irmão, nem a mãe sabiam nada dele... Laura, inquieta, tentava telefonar... Não era fácil contactar com o barco, um navio republicano que, supostamente, deveria manter-se, actualmente, atracado no porto do Funchal... e deveria também manter-se contactável... Laura pensava que, possivelmente, o barco teria levantado ancôra... Teria, talvez,  saído dos Açores, por ordens superiores, por qualquer razão... Talvez estivesse, agora, em pleno mar? Que ruim era esta incerteza!
Numa dessas tardes de tristeza nostágica, num fim de semana, Laura, sozinha em casa, e  ainda aguardando notícias do seu amor, acendeu a televisão, tentando distrair-se um pouco. Música e variedades estavam sendo apresentadas... Não logravam apagar a tristeza do seu coração... Mas, de repente, um cantor espanhol famoso estava cantando uma canção que lhe chamou a atenção:
“Un atardecer llegaste a mí, como primavera en mi jardín... y a la luz de candilejas, yo me enamoré... era tu amor tal como yo lo imaginé...*”
A canção, uma balada nostálgica, combinava com o seu estado de espírito... E também a fazia lembrar do seu primeiro encontro combinado com Martinho, e que marcara o ínicio do seu namoro com ele. Falava de um atardecer... Que canção linda, mas triste! Lágrimas correram pelas faces de Laura, pensando em seu namorado, e no seu silêncio inexplicável... A saudade e a interrogação visitaram-lhe de novo a alma...
- Que é feito de ti, meu amor? Porque não dás notícias? – pensava Laura, sem ligar já à televisão, que continuava apresentando músicas diversas... Ela resolveu que iria procurar nas lojas de discos locais, por um disco desse cantor, que contivesse a canção que acabara de escutar...  De repente, levantou-se, pegou num casaco, na mala, e saiu, agasalhada, para a rua... Dirigiu-se para o jardim que ambos amavam... O pôr do sol tingia de dourado o céu, e de violeta... Estava-se no início de outro Outono... Daqui a pouco, o anoitecer iria chegar... Laura passeava, de mala ao ombro, pelo jardim. Relembrava os seus muitos passeios, com Martinho, por aquele espaço... Quem saberia se ele não reaparecia de repente, de surpresa? Se não poderiam encontrar-se de novo, por ali? Ela adoraria...
E, de súbito, aconteceu como que um prodígio, um milagre: - A alguns metros dali, a deslocar-se com um passo apressado, no seu andar característico, alguém de alta estatura vinha ao seu encontro... Não podia ser! Podia?
Cada vez mais perto, a sorrir, Martinho, apressando ainda mais as suas passadas largas, vinha realmente, de novo, ao seu encontro!
Ela correu. E dois braços compridos, estendidos para ela, acolhedores, a aprisionaram arrebatadamente. Ambos lançaram, em simultâneo, uma exclamação:
- Laura!
- Martinho!
Apertados um contra o outro, abraçaram-se, beijaram-se, riram e choraram ao mesmo tempo...
E, ao anoitecer, voltaram a estar,  e a passear, juntos, finalmente!

FIM


* Trata-se de uma música interpretada por Julio Iglesias, com o título : “Candilejas”, e da autoria de Charlie Chaplin.

Nely, 
Outubro 2017

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