ROMANCE
AO ANOITECER
Laura
saiu da escola secundária que frequentava, e
foi afastando-se dali, ao mesmo tempo que se despedia das colegas, de
forma evasiva, mas um tanto apressada. Dirigiu-se, a passos rápidos, rua
adiante, para a beira-rio.
Ao
chegar lá, andando pelo jardim antigo, viu, a alguns metros dela, duas colegas suas, de outra turma. Olhavam na sua direcção, com
curiosidade, e falando entre si... Ela apercebeu-se da surpresa delas, ao ver Martinho, que vinha ao seu encontro,
conforme haviam ambos combinado, horas antes. Não passava despercebido, com a
sua silhueta alta e magra, os cabelos castanhos ondulados, um bocado crescidos,
a darem-lhe nos olhos, por causa da
aragem, e o seu andar balanceado. Ora, ele vinha na sua direcção, vindo do lado
oposto do jardim, avançando, rapidamente,
a sorrir para ela, e não havia
maneira de elas não o verem, pois ele já estava a chegar perto.
-
Merda!- pensou Laura.- Aquelas gajas viram-me e estão vendo-o a ele... De
certeza que vão andar rondando por cá, para espiarem-me e inteirarem-se de
tudo... amanhã, já a escola toda vai saber disto! Merda!
Laura
calculou o porquê das suas caras
surpreendidas, perante a chegada de Martinho perto dela: Milene e Teresa, tal
como muita gente, na escola secundária, haviam sabido do seu anterior e
primeiro namoro a sério com outro rapaz.
De facto, Laura só tivera, antes,
um primeiro namorado. Isso havia sido facto sabido e conhecido de toda a gente,
uma vez que eles saíam juntos, à vista de todos, e também, Leandro costumava ir
esperá-la, durante esse tempo em que haviam namorado, ao portão da escola, à
saída das aulas. Já naquela altura, várias colegas haviam dado largas à
cusquice, haviam espiado, e comentado... e até se haviam atrevido a fazer-lhe
perguntas indiscretas... Isso arreliava fortemente Laura, que detestava esse
tipo de coisas...
Agora, passado mais de um ano de tudo ter
acabado entre eles, a história estava a repetir-se.
Recentemente,
conhecera Martinho... Nos primeiros dias, foi apenas um rosto novo,
recém-descoberto. Depois, começaram a cruzar mais um com o outro. Laura
percebeu que Martinho a seguia disfarçadamente. Aparecia, como se viesse de
nenhum lado, de repente. E ali estava, perante ela, com um sorriso atrevido e
irresistível. Não sabendo bem, inicialmente, o que sentia por ele, fora, no
entanto, tomando gosto a esses encontros súbitos e inesperados. Conversavam,
embora pouco, a princípio. E finalmente, haviam combinado mesmo um encontro a
sério, junto ao rio, ao anoitecer... As colegas haviam-na certamente seguido...
pois, por várias vezes, antes, ela passeara sozinha, junto ao rio, a qualquer
hora da manhã ou da tarde, sem cruzar, sequer com qualquer delas.
E
ali estava ele, agora, de sorriso aberto, a olhar para ela, e a cumprimentá-la:
-
Olá, Laura! Como estás?
-
Olá, Martinho! Tudo bem?
-Sim!
Vamos dar uma volta?- Sugeriu, baixando a voz.
-
Claro! Para isso viemos!- Respondeu ela, também em tom mais baixo, para que só
ele a ouvisse.
Continuaram,
pois, a falar baixo:
-
Para estarmos juntos, um bocado, como combinado...- reforçou ele.
-
Sim! Exactamente! Não ligues àquelas duas cuscas, que nos andam espiando. São
minhas colegas de escola, mas estão feitas umas indiscretas.
-
Eu topei-as, sabes? Que tal se saíssemos já da vista delas, hã?- Martinho
piscou-lhe o olho, com um dos seus sorrisos atrevidos, ao dizer isto.
-Boa
ideia! Isso mesmo! – Concordou Laura, a sorrir,
e em tom cúmplice.
Laura
e Martinho iam falando entre si, ainda em voz baixa. Foram andando, lado a
lado, e afastaram-se o mais possível do centro do jardim. Procuraram um banco
para sentar-se, num recanto mais discreto.
Queriam estar longe da vista daquelas duas, e mais à vontade. E como a
hora avançava e já anoitecera, podia ser que desistissem de espiá-los, e fossem
embora...
Finalmente,
encontraram aquilo que procuravam: um banco oculto por detrás de um canteiro
onde cresciam gladíolos, de tal tamanho e com tal profusão, que de tão
apertados que estavam, nada se via do lado oposto. Era o ideal para eles, protegendo-os
de olhares indiscretos. E, ainda para mais, tendo a noite já caído. Estava-se
em finais de Outubro. Os dias já eram bem mais pequenos, anoitecia cedo... Os
candeeiros do local estavam já acesos, enchendo o ambiente de uma luz
amarelada, deixando muito do espaço ajardinado na penumbra. Fazia já um tanto
frio.
Sentaram-se.
Martinho, chegando-se mais contra ela,
passou-lhe o braço por cima dos ombros, dizendo, com voz suave:
-
Que bom que estamos sós, finalmente! Vem cá, querida!
Ao
mesmo tempo, inclinou-se, acariciando-lhe o rosto e, fechando os olhos,
beijou-a. Laura tremia, de frio, e de ansiedade. Ele notou-o, certamente, pois
apertou-a mais contra si, continuando a beijá-la. Havia calor, naqueles braços
masculinos musculados, naqueles lábios que tomavam os seus, sem pressa, com
doçura.
Laura
fechou, também ela, os olhos, entregue
àqueles beijos famintos, que ambos trocavam, esquecidos, por momentos, do mundo
que os rodeava... Naquele momento, não queriam saber de mais nada, senão
daquele novo romance, que começava, ali, entre eles, ao anoitecer...
Laura
estava feliz, nessa tarde: conseguira, por fim, esquecer e enterrar a mágoa
profunda que a havia atingido, com o final triste do seu primeiro amor. Agora,
os braços compridos de Martinho envolviam-na, sensual e apaixonadamente. Laura
sentiu-se de novo amada, e também ela, apaixonada de novo.
Martinho
era um belo rapaz: alto, magro mas musculado, olhos verdes e cabelos castanhos
ondulados e rebeldes. Possuidor de uma voz suave, que lhe falava muito
docemente: Martinho dissera-lhe já antes, e agora repetia-lho, entre beijos,
que a achava linda. E reforçava agora esse elogio, acrescentando que a achava
também inteligente. E diferente. Na verdade,
Laura tinha cabelos ruivos, compridos e entrançados, olhos cor de mel,
algumas sardas na cara, e um olhar expressivo. Era um
pouco mais baixa do que Martinho. E tinha um corpo curvilíneo, um pouco roliço.
Ela
quis saber o porquê da insistência dele, nessa sua opinião :
-
Em que é que me achas diferente, miga? Diferente, como?
Ele
respondeu de imediato, sem deixar da abraçar:
-
Querida: Tu não és como as outras raparigas que conheço. Eu vejo-o nas tuas
atitudes. Elas são, na generalidade, cuscas. Tu detestas isso. Tu és discreta,
ao passo que muitas delas dão nas vistas. E tu não estás nem aí p’ras tolices
delas. Tens personalidade... Enquanto que a maioria dessas raparigas, que andam
na mesma escola que tu, são umas “Maria vai com as outras”... Parece que só se
sentem bem sendo ou parecendo todas iguais. Até metem nojo!
-Tens
razão, Martinho! É isso mesmo!
-
Gosto que sejas assim! Gosto da tua inteligência, da tua vivacidade, e também
gosto do teu rosto e do teu corpo. És bem feitinha! Tens belas curvas! E isso
atrai-me! Põe-me louco! E tens um olhar que entra por mim adentro... fora do
vulgar!
-
Eu também gosto da tua maneira de ser, do modo como me tratas... Do modo como
falas comigo. E também eu te acho lindo. E doce!
Martinho
riu-se, docemente, feliz. Voltou a beijá-la. Depois, disse:
-
Ambos gostamos um do outro. Nada é mais importante, pois não, miga? Estás aqui
comigo, agora. E estamos ambos felizes, não é verdade?
-
Sim, Amor! Eu estou feliz! Muito!
-
Também eu! E gosto que me trates por “amor”! Faz com que me sinta amado! É tão
bom!
No
decorrer dos dias que se seguiram a esse encontro, esse amor apaixonado foi
envolvendo-os mais e mais... Quando estavam juntos, buscavam lugares ermos e
desertos, tais como a praia, para estar juntos. Afastavam-se de onde houvesse
gente. Queriam acima de tudo, estar a sós um com o outro. Começaram a ir para
casa dele. Assim, além de ficarem mesmo sós, estariam realmente a salvo de
olhares indiscretos. Martinho avisava com antecedência o seu irmão, para que
este não estivesse por lá, quando ele levasse para lá Laura. A mãe deles, viúva
não vivia ali, naquela casa: Tinha outra habitação, e deixara essa para os dois
filhos adultos. Martinho queria poder estar completamente a sós com ela, que
ninguém viesse perturbá-los. Numa dessas vezes, Laura entregou-lhe a sua virgindade.
Depois disso, fizeram amor várias vezes. Davam-se bem, inclusive na intimidade.
Laura aprendeu a gostar desses momentos íntimos. Aos dezanove anos, sentia-se
apreciada, amada. Sentia que se ia tornando mais mulher, nos braços de
Martinho, e sob as suas carícias.
O
tempo foi passando. Chamado à inspecção militar algum tempo antes, Martinho
havia adiado a sua prestação pessoal, para só ser recrutado após ter concluído
os seus estudos. Como ainda não conseguira um trabalho a seu gosto,
Disponibilizou-se então para cumprir o serviço militar. Por conseguinte, teve de
ausentar-se da cidade, afim de ir a uma nova inspecção. Então, foi recrutado,
finalmente, para a Marinha de Guerra, devido ao seu excelente físico, e a saber
nadar perfeitamente.Voltavam a ver-se sempre
que ele podia vir a casa. Escreviam um ao outro, ou telefonavam-se. As saudades
eram muitas. Quando Martinho vinha a casa, de licença, amavam-se, fechados
durante horas a fio, no pequeno quarto da casa de habitação de Martinho, como
antes. Na escola, já toda a gente sabia desse namoro, pois Martinho ia também
esperar Laura ao portão, com a sua moto, na qual costumava levá-la a dar voltas
divertidas. Laura prosseguia os seus estudos, com o afinco possível, afim de
preparar-se para a sua situação profissional futura. Queria ser esteticista.
Mas
a Vida prega partidas... Destacado para os Açores, em cumprimento do dever,
passado quase um ano, e porque o seu
serviço militar estava, entretanto, quase a chegar ao fim, Martinho buscava,
por lá, activa e diligentemente, um
trabalho que o ajudasse a resolver a sua situação, para não ficar no
desemprego. Mas era difícil... Na cidade deles, no sul, também não havia grande
futuro para os jovens... Ele precisava de ter um trabalho, e de lutar, para
criar condições afim de poder ir buscar Laura a Portugal Continental, e
casarem. Queria ficar com ela, ou nos Açores, ou em qualquer outro lado, onde
ambos pudessem ter a sua vida juntos, e o seu cantinho. Empregos eram
escassos... e o que surgisse, dentro das capacidades deles, serviria para
lançar os alicerces de uma vida futura, a dois... Motivado através de algumas formações
práticas disponíveis no próprio barco, Martinho aprofundou e desenvolveu uma especialidade de que
gostava, ligada aquilo que estudara: electrotecnia. Já era um começo. Em suas
cartas, que não eram muito grandes, ele contava essas coisas a Laura, que
também lhe escrevia contando como iam as coisas com ela.
Passaram
mais seis meses... e no último mês, silêncio repentino, da parte de Martinho...
nada de notícias... Nem o irmão, nem a mãe sabiam nada dele... Laura, inquieta,
tentava telefonar... Não era fácil contactar com o barco, um navio republicano
que, supostamente, deveria manter-se, actualmente, atracado no porto do
Funchal... e deveria também manter-se contactável... Laura pensava que,
possivelmente, o barco teria levantado ancôra... Teria, talvez, saído dos Açores, por ordens superiores, por
qualquer razão... Talvez estivesse, agora, em pleno mar? Que ruim era esta
incerteza!
Numa
dessas tardes de tristeza nostágica, num fim de semana, Laura, sozinha em casa,
e ainda aguardando notícias do seu amor,
acendeu a televisão, tentando distrair-se um pouco. Música e variedades estavam
sendo apresentadas... Não logravam apagar a tristeza do seu coração... Mas, de
repente, um cantor espanhol famoso estava cantando uma canção que lhe chamou a
atenção:
“Un
atardecer llegaste a mí, como primavera en mi jardín... y a la luz de
candilejas, yo me enamoré... era tu amor tal como yo lo imaginé...*”
A
canção, uma balada nostálgica, combinava com o seu estado de espírito... E
também a fazia lembrar do seu primeiro encontro combinado com Martinho, e que
marcara o ínicio do seu namoro com ele. Falava de um atardecer... Que canção
linda, mas triste! Lágrimas correram pelas faces de Laura, pensando em seu
namorado, e no seu silêncio inexplicável... A saudade e a interrogação visitaram-lhe
de novo a alma...
-
Que é feito de ti, meu amor? Porque não dás notícias? – pensava Laura, sem
ligar já à televisão, que continuava apresentando músicas diversas... Ela
resolveu que iria procurar nas lojas de discos locais, por um disco desse
cantor, que contivesse a canção que acabara de escutar... De repente, levantou-se, pegou num casaco, na
mala, e saiu, agasalhada, para a rua... Dirigiu-se para o jardim que ambos
amavam... O pôr do sol tingia de dourado o céu, e de violeta... Estava-se no
início de outro Outono... Daqui a pouco, o anoitecer iria chegar... Laura passeava,
de mala ao ombro, pelo jardim. Relembrava os seus muitos passeios, com Martinho,
por aquele espaço... Quem saberia se ele não reaparecia de repente, de
surpresa? Se não poderiam encontrar-se de novo, por ali? Ela adoraria...
E,
de súbito, aconteceu como que um prodígio, um milagre: - A alguns metros dali,
a deslocar-se com um passo apressado, no seu andar característico, alguém de
alta estatura vinha ao seu encontro... Não podia ser! Podia?
Cada
vez mais perto, a sorrir, Martinho, apressando ainda mais as suas passadas
largas, vinha realmente, de novo, ao seu encontro!
Ela
correu. E dois braços compridos, estendidos para ela, acolhedores, a aprisionaram
arrebatadamente. Ambos lançaram, em simultâneo, uma exclamação:
-
Laura!
-
Martinho!
Apertados
um contra o outro, abraçaram-se, beijaram-se, riram e choraram ao mesmo
tempo...
E,
ao anoitecer, voltaram a estar, e a
passear, juntos, finalmente!
FIM
*
Trata-se de uma música interpretada por Julio Iglesias, com o título :
“Candilejas”, e da autoria de Charlie Chaplin.
Nely,
Outubro 2017
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