“A felicidade é a espera, a espera feliz, a confiança, é
um horizonte cheio de esperança, é o sonho !” - Guy de Maupassant
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VALEU A PENA ESPERAR
Relembrar aquele
ano escolar é sempre um regresso às memórias lindas do final da minha
adolescência, do início do meu namoro com o Rui. Quanto a mim, eu sou a Sofia
Botelho.
Tudo começou nos
corredores da Escola. Estávamos no início do ano lectivo de mil novecentos e
oitenta e oito. No intervalo entre duas aulas de uma tarde de quinta-feira
outonal. Eu, a Miriam, a Carla, a Inês e a Rosa seguíamos juntas, como sempre,
para o pátio, depois de uma aula de matemática que nos dera bastante que fazer
à mioleira. O nosso grupo ia então rindo de uma boa piada contada pela Inês,
por um dos corredores do primeiro piso, quando aconteceu: Um grupo de rapazes,
tão numeroso quanto o nosso, cruzou connosco. Melhor dizendo, um deles esbarrou
comigo e outro exclamou, a sorrir, ao olhar para mim:
-Hei, míuda!
Pareces mesmo uma top-model!
As minhas
colegas riram aberta e descaradamente, enquanto eu, que sempre tive a resposta
pronta na ponta da língua, respondi, em tom jocoso:
-Nem tu sabes o
quanto!
Outro deles
exclamou:
- Pareces uma autêntica
labareda viva! Como eu gostava de queimar-me em ti! Ui!
-Ficavas
reduzido a cinzas, pá! Coitado!- respondi-lhe eu, no mesmo tom jocoso com que
tinha respondido ao outro.
Gargalhadas à
farta e exclamações de gozo pontuaram esses piropos a que ainda respondi com
um sorriso. Eu tinha, e ainda tenho, uma abundante cabeleira ruiva alaranjada, que
costumava então deixar solta - o que motivou esse tal piropo - e sou alta e
delgada, o que também faz com que me chamem frequentemente top-model, claro.
Entretanto, o que eu fixara, de relance, e me chamara mesmo a atenção, havia
sido o olhar silencioso, mas lindo, de um dos elementos daquele grupo. Mais
precisamente, do rapaz que esbarrara sem querer comigo, por o corredor se
encontrar tão cheio de gente. Eram rapazes de uma turma de décimo ano, conforme
me foi dito mais tarde, enquanto nós, raparigas, ainda frequentávamos
o nono. Não sabia os nomes deles, mas depressa descobri que o dono daquele
rosto lindo e daquele olhar verde se chamava Rui Silvestre. Para mim, ele era
tal e qual o Kevin da famosa banda dos Backstreet Boys, que ainda hoje adoro
ouvir. Aquele olhar era sério, sim, mas intenso e meigo. Os cabelos dele eram
curtos, com um corte moderno, e pretos,
tal como as asas de um corvo. Ele era de estatura média, mais ou menos a mesma
que a minha. Pediu-me desculpa de forma breve, e ajudou-me a apanhar os meus
livros e cadernos que se haviam espalhado no chão. Respondi-lhe com um sorriso,
e agradeci . Olhámo-nos de novo. Algo passou nesse novo olhar conjunto, como
uma energia suave e benéfica, algo agradável. Não pude esquecer-me mais dele.
Cruzei com o Rui
Silvestre mais umas quantas vezes, e com os seus amigos. Agora, quando
passávamos um pelo o outro, sorríamos, e cumprimentávamo-nos com um discreto:
“Olá! Tudo bem?” E aquela energia voltava sempre a passar entre nós...
Até que um dia, já
no meio do primeiro período, encontrámo-nos sozinhos no pátio da Escola, à
saída. Rui olhou para mim, sorriu, cumprimentou-me e convidou-me a ir tomar
algo a um bar próximo da Escola. Aceitei. Era a primeira vez que estávamos
juntos, a sós um com o outro. Conversámos. Sentíamo-nos agora à vontade, ambos, e Rui aventurou-se a
fazer-me então uma pergunta mais indiscreta:
- Sofia, namoras
com alguém?
-Eu? Não, Rui!
Não tenho namorado!
-Eu também não
tenho namorada. Estamos os dois em idêntica situação, então!
-Pelos vistos,
sim! E já vejo que a minha pessoa te interessa!
- Muito! Apesar
de os meus colegas serem uns brincalhões e gozões, eu não sou como eles! Já te
deves ter apercebido disso... E tu interessas-me desde a primeira vez que te
vi.
- Tu também me
interessas desde essa vez! Reparei em como ficaste quase todo o tempo calado e
como olhaste para mim... E bem reparei, inclusive, que não és como os
malandrecos dos teus colegas!
- E tu também
olhaste para mim, do mesmo modo e, apesar das tuas respostas aos piropos, a
gozares, eu soube, no mesmo instante, que essas respostas não me eram
dirigidas! Senti que entre nós passou algo como uma energia positiva, algo
muito agradável...
-Tem piada, que
eu também senti isso, desde essa primeira vez, e nas outras seguintes... E
nunca mais me esqueci de ti, Rui!
- Nem eu de ti,
Sofia! Por isso, tentei conhecer os teus horários, saber qual era a tua turma,
para poder esperar por ti, e para ter a hipótese de falarmos a sós.
- Ena! Queres
mesmo falar comigo!Sim, senhor!
- Sofia, agora,
a falar muito a sério: -Queres ser minha namorada?
- Quero, pois!
Acho que podemos tentar namorar. Parece-me que temos coisas em comum, além de
que me agradas bastante! E o teu empenho em saberes mais a meu respeito, em
procurar-me, também me agrada!
-Uau! Também tu
a mim! Namorados, então!- Disse o Rui, com um maravilhoso sorriso, olhando para
mim com um brilho espectacular nos olhos.
A mão dele, por
cima da mesa, segurou na minha, delicadamente. Acariciou-a e apertou-a
suavemente. Eu correspondi: Já para comigo mesma havia chegado à conclusão de
que gostava bastante do Rui.
-Que tal irmos
dar uma volta?- Perguntou-me, olhando-me com aquela expressão doce que me
derretia por dentro.
- Sim, vamos!
Rui quis pagar a
conta dos nossos lanches, não me deixando pagar a minha parte:
- Quem convida é
que paga! Além disso, fui ensinado a ser eu a ter a iniciativa, e a pagar a
despesa, se convido uma rapariga para tomar algo! É uma atitude própria de um
homem a sério!
-Concordo! E
aprecio! Obrigada!
Saímos do bar e, já na rua, demos as mãos, em
silêncio. Olhámos um para o outro, e seguimos pela rua, sem que as palavras,
naquele momento, fossem necessárias. Os nossos olhares eram eloquentes. A um
cruzamento de rua, já na penumbra, pois que o anoitecer avançava, parámos, de
comum acordo. Rui tomou-me nos braços, e beijou-me com uma doçura inigualável.
Que felizes nos sentíamos, juntos! Aquele primeiro beijo ficou-me para sempre
na memória: Era a união esperada da nossas almas, era o confluir de toda a
energia suave e agradável que ambos havíamos sentido antes, a atrair-nos um
para o outro!
A partir desse
dia, tirávamos sempre tempo para estar juntos, diariamente, sem que isso
interferisse nos nossos estudos respectivos. Tanto eu como o Rui tínhamos tempo
para estarmos com os nossos colegas de turma respectivos, e tempo para nós
dois, diariamente. Conseguíamos, com um pouco de esforço comum e bom senso,
reservar tempo para estarmos a sós um com o outro, ao fim de cada dia de aulas.
Inclusive, passámos a estudar juntos, para rever as matérias que nos davam mais
trabalho. Ele era exímio a matemática, e excelente a explicar-me como
desenvolver e resolver equações. Talvez, se não fosse ele, eu não tivesse
conseguido sozinha. Eu era exímia a línguas, sobretudo a Inglês. Ajudava-o a
ele, que ainda tinha nisso alguma dificuldade. Até os meus pais ficaram agradavelmente
surpreendidos com os efeitos benéficos desse estudo diário em conjunto. Quando
souberam que erámos namorados, e viram o comportamento atinado do Rui,
consentiram em que ele viesse estudar comigo a casa. Simpatizaram com ele, e
viram que o Rui era um rapaz em quem se podia confiar.
Entretanto, o
Natal ia se aproximando, e a festa de despedida do primeiro trimestre absorvia
muita da atenção de toda a Escola, que andava em eferverscência. Iria haver uma
peça de teatro de autor, canções, desfiles temáticos... Tudo estava a ser
programado, experimentado. Os professores da disciplina de Português decidiram
juntar alunos de várias turmas, e fazer ensaios para a peça de teatro que, de
comum acordo, iria ser uma adaptação ao palco do conto de Eça de Queirós, “O
Suave Milagre”. Haviam chegado à conclusão de que era algo belo, tocante, apropriado
para a quadra natalícia, e não muito difícil de interpretar... E não é que a
escolha das personagens principais, entre tantos testes de escolha, recaíu
sobre o Rui, para representar Jesus, e em mim, para o papel de mãe da criança
doente? O miúdo que ia ficar com o papel dessa criança era um aluno do sétimo
ano, cujo desempenho não seria muito exigente, mas que, entre todos, era o
que se prestava mais habilmente para
esse papel.
Eu e Rui andámos
eufóricos, numa roda viva, durante alguns dias. É que cada qual de nós tinha
testes de avaliação que fazer, matérias que estudar, fora os ensaios quase
diários para a peça. Mas, como diz o povo, “tudo vale a pena, quando a alma não
é pequena.” E, finalmente, chegou o grande dia. A manhã das várias turmas da
Escola foi consagrada a dialogar com os respectivos professores, nas várias
aulas, acerca das notas atribuídas a cada um, nesse fim de trimestre. À tarde,
finalmente, com tudo a postos, realizou-se por fim a festa de Natal. O ginásio
havia sido, entretanto, convertido em sala de teatro. Nos bastidores, que
haviam sido improvisados nos vestiários respectivos dos alunos e das alunas, e habilmente
divididos em secções por uma questão prática, pelos professores de trabalhos
oficinais, vários alunos se acotovelavam, tentando acabar de caracterizar-se,
com ajuda de algumas professoras. Outros, ansiosamente, repetiam as deixas do
que iriam fazer e dizer. Havia quem ensaiasse ainda refrões de canções... Um
professor de relações públicas estava destacado como auxiliar, chamando os
alunos e alunas, à medida que chegava a sua vez de entrar em palco... O Rui
estava ao meu lado, no corredor, com uma cabeleira, barba e bigode postiços,
uma túnica branca até aos pés, de sandálias de couro e pés nus. Ríamo-nos ambos, ao olhar um para o outro. Eu
também tinha vestes compridas, e um manto por cima da cabeça, que tapava os
meus fogosos cabelos por completo. O miúdo, que se chamava Alexandre, conforme
soubéramos durante os ensaios, estava ao nosso lado, a sorrir, trajado com o
que pretendia ser uma roupa muito pobre, quase em farrapos. Alexandre achava
graça de sermos namorados e não parava de olhar para ambos.
Finalmente,
chegou a nossa vez de actuar... Revejo ainda toda aquela cena como num sonho...
Primeiro, um cenário de multidões, habilmente pintado, servira de parede de
fundo do palco, com alguns alunos e alunas a desfilar, representando gente que
ia em busca de Jesus...Também houve um par de cenas em que Jesus aparecia com
alguns dos seus discípulos... Por fim, chegou a minha vez: Sozinha com
Alexandre no palco, respondia às suas insistentes perguntas sobre Jesus. Então,
apoteoticamente, o meu namorado ressurgiu finalmente em palco, para a cena
final, cumprindo o desejo desesperado da pobre criancinha que desejava ver
Jesus, vendo n’Ele a solução dos seus problemas. Aplausos crepitaram longamente, nessa aparição.
Por fim, todos três abraçados, terminámos a peça juntos. Novos aplausos
choveram. A nossa actuação conjunta, embora breve, havia sido de um êxito
estrondoso. Fotos haviam sido tiradas e filmagens de vídeo haviam sido feitas.
Para a posteridade, ficariam as recordações de tão belos momentos. As canções
retomaram o tempo final da festa, e alegraram os corações.
Depois disso, um
lanche esperava por todos os que quisessem confraternizar um pouco. Finalmente,
despedindo-nos de algumas pessoas, ambos conseguimos escapar-nos, já a sós os
dois, e fomos dar uma volta para espairecer de toda aquela loucura e
excitação. Abraçados, seguimos por ruas
discretas, ao abrigo de olhares indiscretos. Queríamos estar apenas nós dois,
para trocarmos alguns abraços e beijos, falar das nossas coisas, como quaisquer
namorados. Ríamos ainda das figuras em que nos havíamos encontrado, escassas
horas antes, nos nossos disfarces teatrais... E agora, ali seguíamos pela rua,
apenas nós dois, nas nossas vestes de Inverno, normais e actuais. Fomos até
casa dele. Os pais do Rui ainda não me conheciam bem, e foi a ocasião mais
acertada para travar conhecimento mais chegado com eles. Fui muito bem
recebida, devo dizê-lo. Respirámos ambos de alívio ao ver que os pais de Rui
gostaram bastante da minha pessoa. Isso era muito importante para nós:
Queríamos poder prosseguir o nosso namoro com completa aprovação dos pais de
ambos. E estávamos a consegui-lo.
De comum acordo,
decidimos que não teríamos intimidade física, enquanto não estivéssemos certos
de que o nosso futuro poderia ser mesmo conjunto. E uma situação dessas teria
de ser muito bem pensada, para não afectar nenhum de nós. Primeiro, queríamos
terminar os nossos estudos respectivos. Talvez o Rui conseguisse ser livre da
tropa, se prosseguisse os seus estudos académicos, e caso conseguisse entrada
na Faculdade de Letras. Por meu lado, ainda me faltavam três anos para chegar
ao fim dos meus estudos secundários. Havia ainda muito que fazer, de ambos os
lados. Mas de uma coisa tínhamos ambos a certeza: amávamo-nos a sério, e
queríamos prosseguir o nosso futuro juntos... E decidimos que eu esperaria por
ele, enquanto acabava os meus estudos secundários, e ele os académicos. Por sua
vez, o Rui esperaria por mim, também. Se
vida e saúde nos fossem concedidas, e se tivéssemos a sorte de arranjarmos cada
qual o seu emprego, pensaríamos então em casar, em constituir família...
Assim sucedeu,
de facto e agradeço a Deus que nos uniu. Já passaram uns belos aninhos... O Rui
é um excelente marido, um pai atencioso, e eu faço o possível por ser a melhor
esposa e mãe. Temos uma filha única, a Rebeca. É muito gira, inteligente e com
um carácter parecido com o do Rui. Parecida também fisicamente com ele. Herdou
os seus cabelos negros e os seus olhos verdes. Ela é o nosso orgulho, e a nossa
“mais-que-tudo”. O Rui conseguiu seguir a via do Ensino e é professor de
História. Eu sou tradutora a tempo parcial. O resto do meu tempo é para minha
casa e a minha família. Sou feliz assim.
Temos sido muito
felizes juntos. Que Deus nos conserve juntos e unidos como até agora, é o nosso
voto conjunto.
E nunca esquecemos como nos conhecemos. Já contámos tudo isso à nossa filhota, que acha
imensa graça aos nossos relatos, e admira-se de como conseguimos mantermo-nos ambos
virgens, até casarmos um com o outro. Hoje em dia, poucos o fazem, ou sequer o
conseguem. Rebeca admira-nos a ambos por esse empenho, por essa decisão
conjunta; pelas lutas que ambos tivemos e conseguimos vencer. Pelos obstáculos
ultrapassados. E sobretudo, pela força que sempre demos um ao outro, pelos
objectivos que continuamos a ter, e a tentar alcançar entre os dois. E a
conclusão a que qualquer de nós três tem chegado, ao analisar tudo isso, é
simples e concreta: - Valeu a pena esperarmos! Vale sempre a pena saber
esperar!
FIM
Nely,
Janeiro 2018
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