sábado, 27 de janeiro de 2018

Conto: O Castelo Soturno

O CASTELO SOTURNO
Gilda Barsotti herdara o palácio da sua madrinha, poucos meses depois de casar com Gustave Leclerc. O antigo palácio erguia-se no ermo de uma pequena elevação, perto de algumas pequenas aldeias, no meio de uma região montanhosa, com a estrutura tradicional de um castelo, e rodeado por altos muros. Em volta desse palácio, erguiam-se várias árvores, formando um pequeno bosque, que, com o tempo, e por essas árvores não serem nunca cortadas, se tinha ido adensando, tornando quase impossível a passagem a quem quisesse chegar perto desse  castelo. Os arbustos autóctones também tinham ali crescido de modo selvagem, formando um emaranhado difícil de transpôr.
 Quando Gilda visitara a casa, depois de a herdar, e passados tantos anos, desde a única vez que lá fora com os pais, na sua tenra infância, tivera que rodear pacientemente todo aquele arvoredo compacto, para conseguir, finalmente, encontrar uma estradinha, quase inexistente, que se lembrava vagamente de lá existir. E assim conseguiu ter, finalmente, acesso ao antigo portão com o brasão nobre e familiar da falecida madrinha. Esta não deixara descendência e visto que era viúva,  deixara em testamento esse legado importante à sua afilhada, a quem muito quisera. E também a sua bela fortuna.
O antigo palácio tinha muito recheio: móveis antigos, loiças, quadros, uma antiga biblioteca, bastante fornecida, e muitas outras coisas de valor...
O esposo de Gilda era um oficial do Exército, de famílias abastadas, de ascendência francesa. Loiro e de bigode, pele muito branca e olhos azuis. Cabelos curtos e lisos, com uma franja que lhe cobria a testa até aos olhos. Alto e de constituição atlética. Estava quase sempre ausente de casa, por motivos da sua vida de militar.  Gilda era ruiva, de cabelos avermelhados, compridos e de abundantes caracóis, penteados de forma extravagante, luzindo quase sempre neles fiadas de jóias. Excêntrica no vestir, Gilda adorava envergar vestidos com modelos de outras épocas passadas, e de cores muito vivas, descobertos em alguns dos baús existentes no palácio. Ou então, copiados desses antigos modelos, como os denominados por “Império”. Inspirava-se para tal em retratos antigos e tentava imitar as damas desses retratos, encontrados em velhos livros, em museus, ou ainda, os que existiam no palácio, e eram pertencentes a antepassadas da sua madrinha. Ambos os esposos eram jovens, conheciam-se desde havia muitos anos, uma vez que as respectivas famílias eram amigas. Aquele casamento foi feito por conveniência de ambas as famílias, sem oposição dos filhos, que se davam muito bem, como amigos de infância que eram.  Quando Gilda propôs a Gustave aproveitar o antigo palácio acastelado e habitá-lo, ele concordou logo e plenamente com essa ideia, uma vez que a nova fortuna de sua noiva permitiria fazer no castelo as obras necessárias, para voltar a torná-lo habitável. Gilda dedicava-se a escrever romances policiais, e isso a ocupava bastante, na ausência do esposo. Recebia constantes visitas de alguns amigos e amigas que apreciavam o seu  convívio. Nunca estava totalmente só. Munira-se também de alguns empregados, que se ocupavam da limpeza, arrumação e manutenção da antiga habitação, ou preparavam as refeições de todos. Nas aldeias mais próximas, falava-se muito das mudanças que ali decorriam: Um corre-corre de gente a entrar e sair do castelo, a todas as horas... obras em curso... máquinas... motores a fazer barulho, incessantemente, perturbando a silenciosa e habitual paz da localidade. Carros, carrinhas, camiões... andaimes... Poucos meses depois, o antigo castelo parecia ter recuperado a sua antiga e primitiva glória... A estradinha de acesso, até ali quase oculta pelo emaranhado de arbustos e árvores em crescimento desordenado, fora, finalmente, desimpedida, afim de facilitar aos veículos o acesso ao grande portão brasonado dos antigos condes de Sor-D’Enn-Irr. O que não sabiam os curiosos, porque Gilda pedira o sigilo de todos quantos lá entravam - caso contrário, seriam despedidos - era que, de antigo, o castelo já só tinha, praticamente, o exterior, e algumas divisões... as restantes partes tinham sido modernizadas por completo... A extensa cave havia sido convertida em adega muito bem fornecida. No rés-do-chão, a cozinha, de apetrechos modernos, mas disfarçados com mobiliário com aspecto rústico, permitia preparar e conservar tudo o que lá se cozinhasse. A sala de refeições era também ela rústica, mas espaçosa, confortável, e com uma majestosa lareira, constantemente fornecida de boa lenha, e que estava sempre em funcionamento nos meses frios. Aquecimento moderno havia sido instalado nos vários salões e  quartos, quer dos donos e patrões, quer dos empregados, embora os mais luxuosos conservassem também as antigas lareiras lá construídas, por uma questão de decoração. Casas de banho vastas e  luxuosas, havia duas em cada piso. Cada uma delas numa extremidade do corredor que percorria a casa. Tudo do mais engenhoso e confortável possível. Havia, ao todo, três andares, contando com o sótão. Mas os curiosos das aldeias em redor não percebiam nada, nem sabiam nada a esse respeito...
O que o povo, com base em mexericos, dizia e contava: Durante anos, a propriedade estivera fechada e diziam-na assombrada... Coisas muito estranhas sucediam, desde há muito, naquele local... O bosque, em volta dessa propriedade, era propício aos sustos: qualquer malfeitor poder-se-ia ali esconder, pois era denso, cerrado, escuro. Impressionava e causava arrepios, medo... Uma vez, vários anos antes, alguém se lembrou de rondar o velho bosque à noite... Em má hora penetrou, com dificuldade, entre o denso arvoredo, que, durante muito  tempo, fora deixado inteiramente ao deus-dará, pelo desleixo... Era noite bem cerrada, quando o curioso afoito foi entrando trabalhosamente pelo bosque adentro... Estava quase a chegar ao portão, quando ouviu um grito lúgubre e prolongado, como uma queixa, ou um uivo, mas tão alto e sinistro, que arrepiava os cabelos e deixaria qualquer um hirto de pavor... O coitado não conseguiu distinguir nada mais, que os raios fracos da lua, por entre os ramos das árvores...  e uma luz fraca, errante, que aparecia e desaparecia, como se alguém andasse a fazer sinais no escuro com uma pequena lanterna de bolso... A pessoa fugiu como pôde, estrebuchando e benzendo-se, enquanto o tal pavoroso grito se voltava a  ouvir por segunda vez ... ruídos de batidas de asas se fizeram ouvir, e morcegos espantados surgiram por entre os ramos mais altos que ele podia distinguir, na sua atrapalhada fuga... Mal conseguira sair do bosque, o pobre aldeão correra, com quanta força ainda tinha, sem sequer se virar, e nunca mais quisera voltar por aquelas bandas... Alguém lançou, por isso, o boato, na aldeia, pouco depois dessa ocorrência, de que uma alma penada andava por ali... Dizia-se, também, para além disso, que um certo homem quase havia sido morto, havia muito tempo, por vultos de monstros, que arreganhavam os dentes no escuro... Ainda por cima, e segundo constava, havia por ali cães selvagens e ferozes, ou talvez lobos, que bem os haviam ouvido uivar mais que uma vez... Tudo o que era contado era aumentado, e deturpado de tal sorte, que se haviam criado vários mitos urbanos, e arrepiantes lendas, na base desses acontecimentos mórbidos.
De uma outra vez, anos mais tarde, eram dois rapazotes atrevidos que haviam marcado encontro à beira do bosque com as namoradas... Os quatro jovens começaram a ver sombras a mover-se por entre as árvores e  a ouvir umas gargalhadas sinistras, como de loucos à solta, e  que soaram bem alto... As moças debandaram logo, apavoradas, pela estrada fora, e os rapazes com elas, enxofrados com o sucedido e frustrados com os encontros estragados... E muitos mais casos eram contados, cada qual pior que os anteriores.
  Gilda ria-se dessas histórias, quando lhe vinham ter aos ouvidos. O seu espírito retorcido fazia-a aproveitar-se da mentalidade simplória dos curiosos que via, pela janela, rondar o portão, ou tentando em vão trepar os espessos muros que rodeavam a propriedade. Ela ria-se a bom rir dos sustos que os aldeões curiosos ainda apanhavam presentemente, ao rondar a sua faustosa habitação. E Gilda divertia-se também a mistificar aqueles aldeões, que achava engraçados, mas demasiado curiosos, demasiado crédulos, mas sobretudo, indesejáveis e incomodativos... Uns bons sustos pregados a essa gente pacóvia, e o manter das arrepiantes lendas intactas ou ampliadas, eram-lhe  a ela essenciais, para manter a sua própria paz.  Ela mesma gostava de mencionar, a quem a ouvia, que o castelo era assombrado, que havia fantasmas, nas caves, e na velha torre do lado esquerdo do castelo... Sabia que sempre eram transmitidas lá fora essas coisas que ela dizia, propositadamente, mas com ar de quem cria em tudo isso.
O tempo ia passando, e Gilda alimentava esses mexericos, e divertia-se escrevendo histórias que poderiam aterrorizar qualquer daqueles aldeões, se as lessem! Gilda deu por si, entretanto, a esperar um filho. Como estava quase sempre acompanhada, e sempre tinha transporte próprio, ou alheio, para deslocar-se, saíu todas as vezes que pôde e comprou tudo quanto lhe pareceu necessário para o bébé. A gravidez decorreu sem problemas. Felizmente, o esposo estava presente quando a criança foi posta no mundo, no próprio solar, com a ajuda de um médico especialista e de uma parteira diplomada. Gilda, apesar de excêntrica em certas coisas, era uma mulher  moderna, e havia tratado de tudo para ter o seu filho dentro de água, numa pequena banheira portátil e apropriada, depositada no seu próprio quarto, apetrechado com tudo o que lhe fazia falta.... Convinha-lhe pessoalmente esse tipo de parto que estava na moda e era muito gabado por especialistas e por quem já o havia vivido pessoalmente. O pequeno Lino veio, portanto, a nascer num ambiente calmo, sereno, de luminosidade atenuada, numa transição suave do ambiente morno  e líquido do interior do ventre materno para o ambiente tépido da água da pequena banheira, num quarto acolhedor: Ali não havia ruído algum, e a temperatura do ambiente era amena.
O tempo foi passando. Lino crescia normalmente, como qualquer criança de boa saúde, cuidado com o máximo desvelo, desde o princípio, por uma ama escrupulosa e meiga. Mas, um dia, era ainda Lino muito pequeno, a ama ameaçou que iria embora, recusando-se a continuar ali. Estava farta, cansada do ambiente estranho daquele castelo, cheio de comodidades e modernismos, mas, no entender dela, inóspito. E manifestou, logo que pôde, o seu intuito de sair dali, à sua patroa:
- Senhora Dona Gilda, preciso dizer-lhe algo muito importante, algo de muito grave: Saiba a Senhora que já não suporto mais ficar aqui! Por minha vontade, não fico nem mais uma hora! E já fiquei demasiado tempo! A Senhora desculpe, mas tenho de ir embora! Antes que eu dê em doida aqui dentro!
- Dar em doida, Amely? Então, porquê? Que se passa?
- Sem pretender ofendê-la, Senhora Dona Gilda, acaso a Senhora não sabe que a sua propriedade está assombrada? Sabe, certamente, porque a Senhora o afirma também! Por amor de Deus!
- Isso são tretas, que eu às vezes digo, para fazer chegar o boato às pessoas lá de fora, que são umas intrometidas, umas cuscas e ignorantes... Mas só digo isso para as manter longe da propriedade, apenas! Ou senão, não paravam de rondar, e querer cobiçar o castelo e o seu conteúdo! Quero e necessito que haja sossego e paz por aqui! Tanto para mim, quanto para o meu esposo e o meu filho, e para além deles, para os meus empregados e meus amigos que cá vêem! Se não fosse assim, esses aldeões e outros curiosos, andariam por aí, a enfiar-se pelo bosque adentro, saltavam os muros, vinham para aqui cuscar e, quem sabe, se não se atreveriam a vir roubar, também?- Respondeu-lhe Gilda, calmamente.
- A Senhora pode agir e pensar assim, e não está mal pensado, não! Mas eu é que sei o que sinto, vejo e oiço neste  castelo, a Senhora desculpe-me a franqueza! Oiço barulhos bastante estranhos, quer de dia, quer de noite... E fui abordada, ontem à tarde,  por um sujeito suspeito, que diz ser o verdadeiro dono desta casa, surgido de repente, na minha presença, na biblioteca... Metia medo o tal fulano...
- Ah! Falas do meu parente, o conde, certamente? Sim, ele vive aqui desde há muitos anos! Mas ele nunca te fará mal! É um bocado excêntrico, apenas! E isso, para quem não o conhece, pode impressionar um bocado!  Falarei com ele, hoje mesmo! Eu preciso que cuides do meu menino, Amely! Não posso passar sem os teus serviços! Nem vou, agora, confiar o meu menino a outras pessoas, a que ele não esteja habituado! Isso seria perturbador para ele! Vou tratar de providenciar que ninguém te incomode, que tudo o que possa andar a perturbar-te a ti mesma cesse, de imediato!
- Se a Senhora mo propõe assim, fico... Mas espero que esse homem não me venha pregar sustos, de agora em diante!
-Então está combinado! Fica descansada que, mesmo que o encontres, em qualquer parte da casa, ele já não te vai assustar! Garanto-te! É ele quem mantém à distância os curiosos! Tanto ele, como eu, gostamos de afastar curiosos e mal intencionados deste solar! É por causa da presença do conde que o meu esposo  sai mais sossegado a cumprir as suas funções de oficial, sabendo que eu e todos os que aqui moram estão bem guardados, por ele, e não correm perigo! Certamente, o viste trajado de forma a assustar os mirones e atrevidos, quando ele surgiu perto de ti! Creio, no entanto, que ele não pretendesse assustar-te, pois ele sabe, desde o início, da tua existência aqui, e de quem tu és!
-Deve ter sido isso, então! Porque ele realmente se me apresentou como seu parente chegado, co-herdeiro da propriedade, e como sendo o conde de Sor-D’Enn-Irr! Ele também explicou que era o guarda do castelo! Mas que susto que ele me pregou! Com aquelas roupas de cerimónia à antiga, e aquela capa negra! Ufa! Muito agradecida pela sua intervenção, desde já, minha Senhora! Bem-haja!
- Vou já falar com ele e pedir-lhe que tenha cuidado, de hoje em diante, para não te assustar mais! Mas o resto, são só efeitos especiais para assustar gente intrometida. Nunca se sabe quem possa conseguir introduzir-se cá dentro, apesar da vigilância apertada, e dos meios mais modernos de alarme instalados em todo o castelo! Não são coisas destinadas a assustar-te a ti, mas sim a essa gente de fora!    
Entretanto, aquilo que fizera Amely ameaçar de ir embora não eram ilusões: havia de facto, várias aparições na casa de Gilda, e manifestações estranhas, que a haviam assustado e perturbado imenso. Na tarde anterior, ao ir à biblioteca de Gilda, buscar um livro para ler de noite antes de dormir, um palmo de parede se abrira. E aparecera dali um homem com uma capa negra, e  roupas de cerimónia antigas, como ela descrevera, o qual viera de uma passagem secreta, naquele momento à vista,  e que se voltara instantaneamente a fechar. A estranha e misteriosa personagem olhou para Amely, piscou-lhe o olho, com um sorriso maquiavélico, pondo a descoberto belos e uniformes dentes brancos. Parecia ter cerca de quarenta anos bem conservados.  Avançou pausadamente na sua direcção, dizendo em tom jocoso:
 - Ena! Então, o que temos nós aqui? Uma beldade! Quem sois vós? Rodeou-a, admirando-a com olhares cobiçosos. Chegou-se então a ela, e encostou-a a si, acariciando-lhe os fartos cabelos negros e soltos, enquanto Amely tremia visivelmente, com o medo estampado em seu rosto muito pálido e em seus olhos negros. Ele era um misterioso e belo homem, moreno, de olhos verdes e cabelos negros compridos, puxados para trás e seguros por um pequeno laço, à moda antiga. Olhou-a, por fim, seriamente e disse-lhe,  baixando a voz, em tom rouco, mas já sem troçar, virando-a simultaneamente e firmemente para si, de modo a que ficassem frente a frente, e seus olhares convergissem, mas também de forma a que ela não lhe escapasse:
-Por quem sois, bela dama! Não temais! Não pretendo fazer-vos mal algum! Mas eu é que estou, pelo contrário, quase a sucumbir aos vossos encantos! Começo por apresentar-me:  Sou Adalbert Van Larven, conde de Sor-D’Enn-Irr. Sou co-herdeiro deste palácio. Parente chegado da falecida madrinha da vossa patroa, a Senhora Dona Gilda. Graças a mim, podeis todos estar seguros neste solar, pois sou também o guarda deste palácio e dos seus habitantes! Por agora, vou deixar-vos escolher um belo livro, à vossa vontade. Existem aqui muito boas obras, dignas de ser lidas e apreciadas!  Mas encontrar-nos-emos outras vezes, certamente! Até à próxima, bela dama! Desejo-vos sinceramente boas leituras! Que linda e sedutora sois! Fiquei encantado em conhecer-vos pessoalmente!
Dizendo isto, soltou-a a sorrir, piscando-lhe o olho de novo. É claro que o conde sabia perfeitamente quem era Amely, e quais as suas funções no palácio. Mas quisera, no entanto, divertir-se um pouco à sua custa. E ficara realmente seduzido pela insolente beleza dela.
Depois, desapareceu, saindo pela porta da biblioteca, com uma naturalidade espantosa. Amely  ficara sem fala durante todo aquele momento. Nem pudera sequer gritar.
De outra vez, antes disso, ruídos de correntes se fizeram ouvir de noite, no corredor ao lado do seu quarto,  quando ela já se encontrava em sua própria cama, pronta para dormir. Havia ficado com os cabelos eriçados de pavor. E claro que não conseguira sequer fechar os olhos nessa noite.
Mais recentemente, essas manifestações diversas continuavam: uma voz de homem falava, mesmo durante o dia, na ala esquerda da mansão, precisamente em par dos aposentos dela e de Lino, o seu pupilo. Essa voz repetia sempre a mesma frase:
  - Quem nesta casa quiser permanecer, à minha vontade terá de obedecer!
Isto era dito em tom autoritário, mas não muito alto. Mas quando era dito, Amely sentia um frio medonho, glacial, atravessar-lhe o corpo. Isto fora ali  repetido vezes sem conta, durante anos, antes de que qualquer deles ali habitasse. E continuava actualmente. Até que, saturada de tais manifestações que se alternavam e repetiam, ela clamou certa vez:
- Vade retro, Satanás! O sangue de Cristo me cubra!
E ouvira como resposta uma risada escarninha, troando numa voz cavernosa, como que proveniente de um dos quadros  da galeria de retratos por onde ela acabara de passar. Fora então que decidira deixar aquele lugar. Mas acabara por ficar, devido à conversa tida com a patroa, à intervenção desta, e verificando que, embora Adalbert se cruzasse com ela várias vezes, já vinha trajado normalmente, e já não provinha de aberturas de passagens secretas. Também já não a assustava. Pelo contrário, cumprimentava-a, normalmente, e sorria-lhe de modo sedutor. Acabara por se habituar a ele e a conviverem de modo agradável. E ele seduziu-a, por fim.  Tornaram-se mais próximos, e por fim, amantes.
O tempo foi decorrendo, e Lino foi crescendo, como é lógico.
Lino, que era muito atinado  e meigo na presença da ama, e da própria mãe, tinha, no entanto, uma inclinação maquiavélica: Ele próprio atravessava todas as passagens secretas do palácio, que descobrira sem que ninguém lhas assinalasse. Divertia-se a assustar quem ainda, apesar de tudo, se introduzia no bosque em volta do castelo, de noite. Ele conseguia-o emitindo simulacros perfeitos de pios de coruja, que sabia serem bem assustadores para os curiosos que tentavam rondar por ali. Outras vezes, ele próprio, com um bom disfarce, se fazia passar por fantasma, e de gravador a pilhas escondido debaixo da longa capa negra que usava, emitia sons roncos, e fazia piscar uma pequena lanterna de bolso, de maneira que qualquer que ali se aventurasse fugisse, borrado de medo.
Enquanto a mãe o julgava entretido a ler, ou a brincar inocentemente, no seu próprio quarto, Lino, muitas vezes, andava por dentro das várias passagens secretas. Assim descobrira, ele próprio, numa delas, o conde vampiro, que assustara Amely, e fizera amizade com ele, ficando logo a saber que era o seu próprio padrinho. Ambos eram da mesma estirpe.  Compraziam-se no mal. Riam-se dos sustos pregados às pessoas crédulas. Riam-se também dos primeiros sustos de Amely. Os seus risos soavam escarninhos por dentro das paredes, parecendo vir dos retratos de antepassados da madrinha de Gilda. É que Lino também era vampiro, e a mãe sabia-o. Porém, isso não a ralava nada: ela convivia com isso naturalmente. Adorava o filho, e na ausência do marido, entregava-se ela própria àquele parente e conde vampiro que ali vivia, no esconderijo secreto daquele palacio antigo, que era sua morada, desde havia muitos anos. Ela própria, era semi-vampira, e seguia, descontraidamente, vivendo feliz, e escrevendo os seus romances, que tinham um sucesso louco. Seguia vendendo-os, de uma forma fabulosa, e ganhando cada vez mais dinheiro.  O que só ela, o marido e Adalbert sabiam, é que Lino era filho de Adalbert, e não do seu marido, já que este  último passava muito tempo ausente. Além disso, o pai biológico e o filho eram muito parecidos.
Gustave Leclerc sabia perfeitamente que o filho não era seu, porque  ele próprio era homossexual, nunca tocara em Gilda, e acedera a fazer aquele casamento de fachada, por conveniência, com a condição de que Gilda fosse discreta, o que ele também se esforçava por ser. Mantinham, para conveniência de todos, o seu casamento aparente, que parecia autêntico. Mas eram muito amigos, como atrás se disse, e davam-se muito bem. Gilda nascera noutro lugar, mas sendo oriunda  daquela família de vampiros, a quem aquele castelo pertencia, desde havia muitas gerações. Gustave vinha a casa de vez em quando, sempre que tinha licença do Exército para tal.  Conviviam perfeitamente, como amigos.  Divertiam-se com o medo que as pessoas lá fora tinham de sua linda  e faustosa habitação, e do que nela havia. Quando Amely ameaçara ir embora, ela contara tudo a Gustave. Ele achara imensa graça a tudo aquilo. Inclusive, rira, divertido, quando a própria Amely, pouco tempo decorrido, e seduzida por Adalbert, se tornara, por sua vez, amante deste, e vampira, também. Gilda o havia descoberto à socapa, e  haviam rido ambos, divertidos, ao aperceberem-se do caso. Gilda  não se importava com isso. Adalbert podia ter todas amantes que quisesse, que isso não a afectava, pois ele a satisfazia plenamente. Não deixavam de se amar ambos. Ele era, além disso,  um excelente guarda, tanto diurno, como nocturno, e cumpria de modo excelente as suas funções. Adalbert era também um bom conviva para todos, dentro do solar.
E Gilda, em casa, espreitando pela janela, mais do que uma vez, rira a bandeiras despregadas... Fora ela que também mandara instalar e pôr em marcha um moderno  e bem dissimulado sistema de altifalantes, ligados junto aos muros da propriedade, pelo lado de dentro, e que, por sua vez, eram accionados digitalmente do interior da casa, sempre que necessário. Esses altifalantes estavam preparados para difundir esses supostos gritos que gelavam o sangue, esses uivos medonhos, ampliados, e até a gravação de gargalhadas malévolas. De facto, Gilda fizera várias gravações das suas próprias gargalhadas, de acordo com o marido, que a ajudara a isso. E tudo de acordo, também, com Adalbert, que a considerara, desde o ínicio, como uma mulher tão bela quanto inteligente... Gustave divertira-se a valer com tal engenhosidade da esposa, e achava imensa piada à sua maneira escandalosa de rir.
Ele deleitava-se a ouvir a esposa contar-lhe acerca dos sustos que conseguia pregar àquela gente intrometida. De facto, todos eles apreciavam a tranquilidade, e tinham achado essa maneira engenhosa de afastar da sua propriedade os mirones, e oportunistas... Gustave era tão retorcido de espírito quanto Gilda, e ambos riam a bom rir, com coisas que teriam feito arrepiar fosse quem fosse.  Gilda tinha uma imaginação fértil, e já levava um bom palmarés de romances policiais escritos, dos quais o mais recente se havia, em pouco tempo, tornado “best-seller”...
Amely, tornada vampira por Adalbert, era um tanto ciumenta ao princípio. Mas cedo compreendeu que isso não lhe serviria para nada, e que devia acostumar-se a ser a amante  número dois de Adalbert. Que ela própria nada perdia com isso, pois mesmo assim, ele a tornava uma mulher feliz. Acabara, finalmente, por adquirir a mesma mentalidade que os outros membros da família, por adaptar-se àquele ambiente e por divertir-se também.
E assim vivia essa familia, tão peculiar, e em que todos tinham uma inclinação tão divertida quanto malévola...
Já se passaram vários anos... Gilda e Amely continuam belas e jovens, segundo dizem os seus conhecidos, que as visitam frequentemente ... Gustave veio a falecer numa batalha, defendendo a sua pátria, há alguns anos. Mas Adalbert continua o mesmo homem de aspecto jovem e sedutor. Lino cresceu, tornando-se um jovem muito semelhante ao pai biológico... O seu espírito malévolo e trocista compraz-se em continuar a assustar os curiosos... Dizem os seus poucos amigos que ele arranjou uma noiva parecida com a sua própria mãe, e que também adora o tipo de livros escritos por Gilda... A propriedade continua a ser mantida em bom estado e com bastante e moderna vigilância... Deixemo-los continuar com a sua vida tranquila... de vampiros imortais, bem-dispostos e bons viventes, enquanto, ao redor do castelo, é perigoso rondar, à noite: ainda se ouvem por ali uivos e lamentos...

FIM

Nely,
Janeiro 2018.


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