terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O ANJO DE PEDRA - CONTO

DO MEU NOVO VOLUME DE CONTOS PORTUGUESES "TRANSCENDÊNCIAS"

O ANJO  DE  PEDRA

Olhando uma vez mais para o esboço do retrato dela, ele foi continuando a talhar o bloco de pedra, que ia, pouco a pouco, tomando forma. O rosto da estátua já estava quase todo pronto. Faltava, ainda, por trabalhar, o  corpo, que não estava completo… Se continuasse a trabalhar com afinco, durante tantas horas diárias, a escultura ficaria pronta dentro de pouco tempo…
Parou uns instantes, limpando, com as costas da mão, o suor que pingava do rosto, abundante. Estava-se no Verão. A tarefa era árdua. Mas não queria demorar-se muito com aquele trabalho, feito por conta dele mesmo, uma vez que tinha, para além disso, uma encomenda, para uma galeria local, de uma colecção de quadros. Estes iriam figurar numa exposição que, dentro de poucos meses, iria decorrer… E ele queria ter isto já pronto nas próximas semanas… Devia isso à sua própria consciência…
Alexandra pousara para ele durante horas sem fim … Haviam sido tão felizes, juntos! Ele havia-lhe dito que ela merecia servir de modelo para uma bela estátua… Ela rira-se, achando piada, mas sem levar a sério as suas palavras… Ele insistira e ela consentira em pousar para ele… Vestira-se de várias maneiras, e até pousara nua… Mas, entre os vários retratos dela, aquele  de que ele mais gostava, era um em que ela figurava vestida com uma longa túnica branca, de amplas  mangas… Ela deixara o cabelo solto pelos ombros,  com os seus caracóis louros acinzentados, a tocar na túnica de alva brancura, com os seus doces olhos verdes de meiga expressão, e o rosto bonito, de feições gentis. Parecia um anjo, naqueles momentos em que pousava… Alexandra era mesmo linda! Eles haviam sido amigos de infância, e ele assistira, ao longo dos anos, à transformação que nela se operara… da terna e alegre criança de cabelos em saca-rolhas, que com ele partilhara tantas horas felizes de brincadeiras, à jovem cujo retrato ele havia feito no papel… Até pintara quadros em que ela lhe havia também, servido de modelo… haviam-se casado quando ela fizera vinte anos… Já havia dois anos desse acontecimento…
Era o retrato dela com a túnica, o que ele havia escolhido, para esculpir, havia pouco tempo… às vezes, em momentos de íntimas ternuras, chamava-lhe “Meu anjo”… Ela sorria-lhe e respondia-lhe baixinho: “Não sou nada um anjo!... Não me chames isso!” Mas ele insistia: “Tu és tão bela, tão doce… por isso, te chamo meu anjo!”
Lágrimas amargas correram dos seus olhos… Havia seis meses atrás, Alexandra morrera, vítima de uma doença rara, galopante…Logo depois disso, ele metera na cabeça realizar aquela escultura como homenagem…
Os meses passaram… A estátua ficara pronta e, para uma homenagem derradeira, acabava de ser colocada junto à campa rasteira, de mármore, no cemitério. Naquela parte do cemitério, não havia mais nenhuma estátua. Alguns familiares da sua jovem e falecida esposa quiseram assistir a essa homenagem-surpresa… Ali se encontravam, também, os pais e irmãos dela… A estátua estava tapada com um pano, aguardando alguns discursos e a leitura de poemas por parte de algumas pessoas amigas.
Rodolfo destapou, então, a estátua, que levara algum tempo a realizar…
Exclamações de assombro se fizeram ouvir… pois a figura de pedra que ali havia sido fixada, em tamanho natural, branca como a neve, era a de um anjo lindo, de asas abertas, braços estendidos para a frente e cabeça erguida, rosto sorridente… e esse rosto continha a expressão, esculpida na perfeição, da sua amada Alexandra…
Passado o primeiro momento de assombro, as pessoas presentes concordaram que a estátua estava perfeita, era linda, e refletia perfeitamente o que a jovem tinha sido em vida: um verdadeiro anjo… e como um anjo, a sua estadia neste mundo havia sido breve…
De regresso a casa, exausto, estendeu-se, por momentos, no sofá da sala deserta. Adormeceu, involuntariamente, pois nos últimos dias, trabalhara intensamente e dormira pouco…
Encontrou-se, sem saber como,  num campo florido, cheio de sol, e viu vir direito a si um vulto todo branco, luminoso, cuja túnica alva esvoaçava. Vinha mesmo direito a ele! Quando o vulto ligeiro e feminino chegou perto, parou, ficando numa posição e numa atitude diferente, estranha… Ele aproximou-se. A figura, que lhe parecera viva, transformou-se em pedra. Assustado, surpreendido, viu que a pedra era apenas aparente, como uma estátua que ganhasse, de repente, vida! A cabeça moveu-se. Asas se lhe abriram, um braço se ergueu na sua direcção. Ele recuou, sob o choque. Os olhos fixaram-no, enquanto a boca se abriu para falar-lhe e foi então quando reconheceu o rosto de Alexandra, em vez do rosto de pedra, de feições indistintas que vira primeiro.
Ouviu e reconheceu a sua voz meiga e triste:
- Rodolfo! Porque fizeste esta estátua? Porque me quiseste aprisionar num bloco de pedra? Eu disse-te, tanta vez, que não era nenhum anjo! Agora, que sem amarras terrestres, eu poderia ser feliz, estás a prender-me a alma neste lugar desditoso!
De facto, à volta da figura que lhe falava, viam-se, subitamente, campas com cruzes…
 A figura desvaneceu-se de diante dele, e viu-se diante da escultura que inaugurara, umas horas atrás. O rosto do anjo continuava idêntico, mas de repente, ficou sério, e lágrimas grandes rolaram pelo rosto de pedra, que o fixava…
Rodolfo agitou-se, aflito… acordou…
- Meu Deus! O que foi que eu fiz? Realmente, não devia! E agora, como vou remediar isto?
O mal estava  feito! Não podia,  agora, ser já alterado…
- Perdoa-me, Alexandra! Perdoa-me por amar-te deste modo, demasiado! Perdoa-me, meu amor! E agora, que posso fazer?
A sua pergunta ficou, naquele momento, sem resposta…
Porém, ao voltar a adormecer, nessa mesma noite, após várias horas de desassossego, voltou a ter sonhos estranhos… viu-se  a chegar diante da campa de Alexandra, mas quando olhou para o anjo, este tinha o rosto mutilado, marcado por  grossos veios semelhantes aos de lágrimas que escorressem… A expressão alegre que esculpira nas feições de pedra tinha desaparecido…Uma das asas estava quebrada… as vestes de pedra mutiladas em várias partes… A voz de Alexandra soou, triste e suave, no meio da sua desoladora solidão:
- Rodolfo, suplico-te, destrói esta estátua! Antes que seja tarde de mais! Quebra este anjo! Agradeço a tua intenção! Sei que foi por amor que o esculpiste… Mas não deves representar-me desse modo! Retira este anjo de pedra daqui! Por favor! Suplico-te!
Voltou a acordar, cheio de um suor gelado… Sentiu como se Alexandra tivesse  realmente estado ali… Julgou sentir uma baforada leve, tal como um pequeno resquício, do perfume favorito dela, a passar junto do seu rosto… Olhou para a cómoda, frente à cama… Sobressaltou-se: o frasco de perfume de Alexandra ali estava, como sempre, pois ele não o havia tirado dali, mesmo depois de ela partir… Mas estava destapado, no meio da superfície de cima da cómoda, coisa que não era normal. Havia meses, desde a morte da jovem, ninguém tocava nesse frasco de perfume, nem em nada dela, por uma questão de respeito. Outro indício: a escova com que ela, durante muito tempo, se penteara, e que costumava estar na casa de banho, encontrava-se ao lado do frasco de perfume! Ele ergueu-se, sentindo ainda o perfume e vendo que a escova tinha cabelos dela ainda presos, o que também não era normal, pois ele via essa escova todos os dias, na casa de banho, arrumada junto com outras, numa caixa própria, sempre limpa… como ela a havia deixado!
- Alexandra! Querida! Estiveste… ou ainda estás por aqui! Prometo-te que hoje, mesmo, vou tratar dessa infeliz escultura! Prometo-te, repito! Mas que ideia peregrina eu tive, ao esculpir esse anjo! Juro-te que o destruirei!
Quando ele passou pelo corredor, para se dirigir à cozinha, viu que um pequeno "bibelot" de marfinite pintada, que era dos favoritos de Alexandra e que representava precisamente um anjo em miniatura, e que ela própria havia pintado em tempos, estava tombado no chão, partido em vários pedaços… lembrava-se agora de ter ouvido um ruído um bocado distante, como o da queda de um objecto, no meio do seu sono, durante a noite… A mensagem era clara: Ela rejeitava agora, onde quer que se encontrasse, qualquer representação angelical!
Era bem cedo e decidiu sair, antes que começasse a vir muita gente,  dirigindo-se ao cemitério, para falar de imediato com o responsável. Sendo ele próprio o proprietário daquele talhão novo onde se encontrava a campa de sua esposa, e sendo ele o autor da escultura, o encarregado do lugar não estranhou, quando Rodolfo lhe disse que tinha de levá-la, pois tinha de lhe fazer alterações. O homem, solícito, ainda o ajudou a desmontar e carregar a linda, mas malfadada escultura, para o cofre do seu carro, no qual havia sido trazida para ali, dias antes. Se a família dela perguntasse algo, sobre esse  assunto, a resposta seria a mesma que havia servido para o encarregado. Pelo menos provisoriamente… Um dia explicaria a verdade aos seus familiares, pois sabia que tinham o direito à verdade acerca desse assunto…
Afastando-se dali com o carro, Rodolfo guiou, determinado, para fora da cidade. Queria ir para um sítio ermo, junto à Natureza, onde ninguém o perturbasse, na execução da tarefa final que tinha a cumprir para com Alexandra, respeitante à escultura, e que não ia ser nada fácil! Mas era a última vontade de sua amada, e ele tinha de cumprir a promessa feita na véspera, e na própria manhã, ao acordar.
Após guiar durante alguns quilómetros, chegou perto de um pequeno monte, junto a uma cascata. Era um lugar deserto. Parou o carro, estacionando-o de modo a poder extrair sem problemas a estátua. Abrindo o cofre do carro, apanhou um par de cordas, grandes, grossas e fortes, que trouxera com ele. De modo engenhoso, conseguiu envolver e prender a estátua, com as referidas cordas, puxando-as a seguir para fora.. Após um bocado de esforço intenso, conseguiu, finalmente, que o anjo de pedra ficasse no chão. Parou uns instantes, para retomar fôlego. Depois, voltou a pegar nas extremidades das cordas, puxando-as, andando para a frente, parando e recomeçando até ter saído da beira da estrada para uma clareira, no meio das árvores. Algum tempo tinha decorrido desde que saíra do cemitério, rumo ao campo…Mas ele sabia que não voltaria para casa antes de concluir o que tinha em mente…
No meio da clareira, deixou a escultura branca, voltando ao carro, que não estava longe. Tinha de ir buscar alguns objectos, inclusive ferramentas, para levar a cabo o ritual que tinha em mente. Ele já lera algo a respeito de rituais para certas situações e esperava conseguir levar este a cabo!
Depois, com as ferramentas, propunha-se despedaçar toda aquela obra de arte, que executara com tanta perfeição, tão árduo trabalho, e tanto amor! Mas o amor que ainda sentia por Alexandra era maior, e devia levar avante aquele plano final, para libertar a sua alma que ele, involuntariamente, prendera naquela escultura. Ele desejava que ela fosse totalmente livre, e voasse, feliz e liberta para o Céu… Quando voltou, finalmente, e com o anjo erguido com esforço, em pé no meio do terreno, começou  a dispôr velas, um queimador de incenso e outras coisas  necessárias para dar início ao ritual, em volta da estátua, tal como  vira num livro de rituais, que trouxera consigo. Acendeu as velas e o queimador de incenso, e começou então a dizer as frases que ia lendo nesse livro, para esse efeito… À medida que ia falando, audivelmente, viu como uma névoa ir saindo de dentro da estátua…  Quando a ladainha ritual acabou, essa névoa deteve-se perto da estátua, e ele apercebeu-se que tomava a forma de uma pessoa… Ficou tal e qual com a aparência em vida, do vulto querido de Alexandra, e  disse-lhe, devagarinho e a sorrir, o seguinte:
-Obrigada, meu amado Rodolfo! Finalmente, estou livre! Fui imensamente feliz contigo! Não chores por mim! Segue a tua vida! Eu também vou ser feliz, lá em cima, onde já sou esperada por Aquele que me concedeu a vida aqui e me vai conceder, agora, a vida eterna, por sempre ter crido n’Ele ! Adeus, meu amor!
- Adeus, Alexandra, querida! Farei o que me pedes! Adeus!
Então, com um gesto de aceno, o vulto querido foi-se afastando dali, lentamente, e depois, foi subindo lentamente, e perdeu-se de vista no ar…
Quando deixou de ver o vulto amado, Rodolfo pegou num machado e começou, finalmente, a destruir a sua obra… Levou algum tempo, mas conseguiu o pretendido. Depois,com uma pá,  fez uma cova suficientemente larga e funda para onde fez cair os muitos destroços de pedra… A tarde avançava já. Cheio de suor e de pó, dirigiu-se à cascata e lavou-se, mergulhando no jorro da água fresca.
Depois disso, cansado, mas aliviado, pelo dever cumprido, sentou-se atrás do volante. Comeu alguns alimentos, que havia trazido consigo, pois não se alimentara antes. Só depois disso, pôs o carro em marcha, para regressar a casa. Agora, teria de seguir com a sua vida em frente, como Alexandra lhe pedira. Mas guardá-la-ia no seu coração para toda a vida!

FIM

NELY

Sem comentários:

Enviar um comentário