sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Conto: "Em Busca Da Felicidade"

“Conquistar a sua alegria vale mais do que abandonar-se à sua tristeza.” – André Gide

EM BUSCA DA FELICIDADE

-Então, está combinado! Espero por ti, no snack-bar... Até já!
-Até já! Não demoro!
Lívia pousou o auscultador do telefone, pegou na mala  que deixara sobre o banco ao lado da mesinha onde o telefone estava, pondo-a a tiracolo, e apanhando as chaves de casa de cima dessa mesma mesinha, abriu a porta e saíu para a rua, voltando a fechar a porta à chave.
Acabara de falar com Paulo, um amigo de longa data, e ia ao seu encontro, nessa tarde soalheira. Estava farta de ficar só, em casa, enquanto o marido saía sem ela,  sempre que lhe apetecia, e sem a avisar de onde ia, nem de quando voltava. Essa história de ficar ali, como se fizesse parte da mobília, tinha de acabar. Estava farta de sofrer! Vinte anos daquilo...era demasiado! Estava determinada em modificar a sua vida, daquela tarde em diante.
Maquilhada ligeiramente, coisa que há muito não fazia, com o cabelo loiro comprido penteado de forma mais cuidada, e mais sofisticada, parecia mais jovem do que os seus quarenta anos. Rebuscando no seu guarda-roupa, havia encontrado, momentos antes, um belo vestido que comprara algum tempo atrás, e que ainda não tivera  ocasião, sequer, de estrear. Era um belo vestido de meia estação, de tecido estampado, de várias cores, e que lhe caía ainda como uma luva, conforme acabara de verificar, e, dentro dele, até se sentia, agora, renovar. Não fazia frio, e isso era bom. Apenas um casaquinho de malha ligeiro, por cima do vestido novo, bastava. Em passadas apressadas, ligeiras, foi ao encontro de Paulo. Depressa o viu, junto à montra do snack-bar, a duas ruas de distância de casa.
Paulo ergueu-se, para a cumprimentar com um beijo no rosto. Telefonara-lhe momentos antes, pois sabia que Lívia, nos últimos tempos, quase não saía de casa, e que passava o tempo quase todo sozinha.
- Então, querida? Como estás?- Perguntou ele, olhando-a admirativamente.
- Agora, estou começando a ficar bem! Graças a ter falado contigo!
- Que pensas fazer da tua vida?- Perguntou Paulo, sempre a sorrir. Era um homem  da mesma idade de Lívia, com alguns cabelos brancos semeados por entre a cabeleira negra, mas de rosto ainda pouco marcado. Não se poderia considerar Paulo como um homem belo, mas tão pouco pareceria feio.  Era apenas um homem  como qualquer outro, que, apesar da sua profissão de advogado, não gostava de dar nas vistas, e se vestia e arranjava de modo casual e discreto, sempre que não se encontrava a trabalhar.
- Vou pedir o divórcio! Fartei-me, como te disse, há pouco! Ele, esta noite, nem dormiu em casa, e ainda nem sequer lá voltou... – Disse Lívia decidida.
- Isso pode ser considerado, em tribunal, como abandono do lar...
-Sei disso! E é em coisinhas dessas que me vou basear! Preciso da tua ajuda!
-Estou aqui, amiga! Terás toda a minha ajuda! Podes contar comigo, sempre, e desde já!  Tomas alguma coisa?
- Um chá de tília! Preciso de acalmar os nervos!
- Boa escolha! Depois, que me dizes a um cinema? Um filme de comédia recentemente estreado nos cinemas?
-Aceito! Preciso de divertir-me!
-Exactamente!  
A conversa deles prosseguiu, com pormenores da traição em que Renato, o marido de Lívia, a havia magoado, sem que ela lhe fornecesse a razão para isso. Lívia sempre lhe fora fiel, mas ele tinha, desde o ínicio do casamento, atitudes egoístas, e não ligava já nada à esposa. Engenheiro agrónomo, sempre e supostamente muito ocupado, já nem compartilhava os tempos livres com ela. Quase nem se falavam. Não a convidava sequer para sair a tomar um café.
Lívia sentira-se, pouco a pouco, desprezada, posta para trás. Sentira-se como uma sombra de si mesma. Como um objecto mais, entre outros, dentro das paredes da sua própria casa, que herdara dos pais. Estudara pouco, não tendo chegado a avançar mais do que os estudos de escola secundária. Não tinha licenciatura alguma.  Sabia fazer muitas coisas, sendo uma mulher de inteligência média, porém bastante habilidosa. Todavia, era apenas uma dona de casa, tal como muitas. Renato impusera que ficasse em casa, com o argumento de que bastava ser ele a trabalhar. Não tinham filhos. Descobrira, alguns anos antes, problemas físicos que a impediam de engravidar, e que não tinham possiblidade de tratamento.  A sua vida actual era por isso, naquele momento, e desde algum tempo antes, vazia. Ela e Paulo eram amigos desde os tempos de escola primária, e Paulo, ao contrário dela, havia prosseguido os seus estudos... Propôs-lhe ser ele a tratar do divórcio dela.  Lívia aceitou de imediato.
-Em primeiro lugar, vamos inventariar os bens que ambos possuem, e ver o que pode ser-lhe entregue a ele, ou se a atitude dele persistir, perde inclusive o direito a eles...- disse-lhe Paulo, entrando logo em pormenores práticos para a resolução rápida desse assunto.
- Tu, como especialista desses assuntos é que o poderás dizer... – corroborou Lívia. Estava desejosa de ver esse assunto resolvido, a sua vida mudada.
- Se ele não tiver voltado, até amanhã de manhã, mudamos a fechadura da porta da tua casa. Ou, até mesmo, se quiseres, já hoje! E pões-lhe logo a mala com as roupas à porta. Porque o comportamento dele não merece outra coisa. Não o deixes entrar mais ali.
-Certo! E se ele quiser falar?
 - Não caias nessa! Há quantos anos casaste com ele?
- Há vinte!
 - E há quantos é que ele não te liga nenhuma?
- Já lá vão bem uns sete...
-E tu deixaste arrastar o assunto tanto tempo? Ele assim julgou que podia continuar, mulher! Por isso chegou a esse ponto!
- Realmente, a culpa também é minha, por não me ter imposto mais cedo, e ter tido medo de represálias...
- Ele batia-te?
- Não, mas dizia coisas que magoavam! E sempre fiquei com medo de que o fizesse!
- Violência psicológica! Que bem!- Resmungou Paulo, revoltado. Para ele, embora solteiro, uma mulher era tão digna de carinho, atenção e respeito como um homem. E todo aquele que praticasse algum tipo de violência era digno do seu desprezo.
A conversa continuou por algum tempo, até chegar a hora de assistirem ao filme que haviam combinado ir ver, no cinema ali perto. Uma comédia interessante: “ Um Vagabundo Na Alta Roda” . Riram bastante, enquanto assistiam a peripécias caricatas, e partilhavam um pacote enorme de pipocas. Lívia sentiu-se como se voltasse a ter vinte anos, durante esse lapso de tempo. O seu bom humor regressara. Paulo levou-a de regresso a casa. Verificaram que, realmente, Renato não havia regressado. Paulo foi então a uma drogaria, onde podia comprar uma fechadura, para trocar de imediato a da porta da casa de Lívia. Ela, entretanto, ficou a juntar as roupas e objectos pessoais do marido, metendo tudo em alguns sacos, e juntando estes ao pé da porta de casa, na entrada. Paulo regressou, com ferramentas e uma fechadura nova, com a qual, habilmente, substituiu, em pouco tempo, a anterior.
-Assunto resolvido, menina! Agora, se não te importas, vamos deixar isso tudo, e vais jantar comigo, aqui perto!
- Se o gajo voltar, não irá arrombar a porta?
- Tens razão! É bem capaz... Mas não vale a pena estar com receio disso! Tens de ser corajosa e enfrentá-lo! Apanhá-lo de surpresa! Deixas já tudo aqui, encostado à porta. Só lho entregas, quando e se cá estiveres. Senão, ele vai ter de esperar que marques com ele data e hora que a ti te convenha, para tal! Ele assim já nem entra! E vou telefonar já a quem de direito, para arranjar maneira de não o deixarem entrar, e que nem te chateie!Não vai ter hipótese!
-Como assim?
-Amanhã, logo cedo, vais comigo tratar de pedir uma providência cautelar. Ele, assim, será impedido de voltar sequer a aproximar-se de ti! E terá, por força disso, de manter alguma distância obrigatória!
-Boa! És um ás! – respondeu Lívia, a rir.
-Obrigado! Obrigado! – Respondeu Paulo, fazendo uma vénia cómica, com uma mímica divertida. Essa era uma faceta que Lívia sempre admirara em Paulo: Ele conseguia divertir quem com ele estivesse, com o seu jeito brincalhão.
Jantaram alegremente, como se não tivessem passado tantos anos, desde que eram companheiros de estudo e brincadeiras. Lívia sentia-se renovar, rejuvenescer, voltar a ser ela mesma. Paulo elogiou-a:
-Tu, hoje, já me pareces de novo a Lívia que sempre conheci! Graças a Deus que estás a recuperar a tua boa disposição, assim como esse teu olhar alegre e esse belo sorriso que sempre apreciei em ti!
- Tu és a causa dessa recuperação! Sem a tua amizade, a tua ajuda, ainda estaria em casa, possivelmente, a morrer de tédio, e a envelhecer moral e espiritualmente...
- Reconheço que te dei uma mãozinha! Mas a tua vontade de sacudir o marasmo que te aprisionava tem a maior importância neste caso! Se não tivesses essa vontade, não tivesses tomado consciência de que a tua situação era reversível, não estaríamos ambos, aqui e agora, a divertir-nos e a fazer com que pareça que voltámos aos bons velhos tempos! E devo dizer que o espelho, em casa, deu uma ajuda valente na tua mudança de visual! Ultimamente, quando te via, tinhas um aspecto triste, monótona, abatida. Agora, estás linda! Os teus olhos readquiriram brilho, o teu riso é solto, como antigamente! Bravo! A minha jovem amiga Lívia ressurgiu de dentro de ti! Fico feliz por te ver assim!
Passou uma semana. Durante esse lapso de tempo, a vida de Lívia deu uma grande volta: Não só devolveu ao marido os seus pertences pessoais, como conseguiu livrar-se dele de vez. Renato sabia que estava em falta, para com ela. Por isso, não complicou a situação e aceitou levar o que lhe pertencia, de uma vez, abandonar definitivamente aquela casa. E como também decidira já, por si próprio, ir embora e juntar-se com a mulher com quem se amantizara já havia alguns anos, não perdeu tempo a discutir com Lívia. Interiormente, ficou um tanto surpreendido com a nova atitude dela, e com a sua decisão de introduzir, ela própria, mudanças na sua vida.  Admirou silenciosamente o novo visual da sua ex-mulher, e pareceu-lhe inclusivamente mais nova. Pensou que era extraordinária essa mudança, de um dia para o outro. Mas não se importou muito com isso. Há muito que já não a amava. Embora tivesse vivido com ela, partilhado a casa dela durante vinte anos, há muito que a sua relação arrefecera, se degradara, desde que ele havia encontrado Natália, e se havia apaixonado por ela. Compreendera, nessa altura, que o seu casamento com Lívia havia sido um erro. E agora, sentia um peso tirado de cima, ao ir embora, levando tudo o que lhe havia entregado Lívia. Não carecia de bens materiais nenhuns, uma vez que a casa de Natália se havia, aos poucos, tornado mais e mais o seu novo e verdadeiro lar. Sentia-se bem lá. E Natália ia dar-lhe em breve um filho, coisa que Lívia não pudera fazer, infelizmente, e que o atraía ainda mais para a sua amante, quinze anos mais nova do que ele.
Entretanto, os papéis para o divórcio amigável haviam sido despachados prestamente, com a ajuda pronta e activa de Paulo. Seria muito rápido assim. Lívia encontrou a possibilidade de frequentar um curso, que a ajudaria a desenvolver em breve um pequeno e rentável negócio pessoal. Tratou também de renovar um pouco o seu guarda-roupa, de modo criterioso, e moderado. Ela sabia como fazê-lo, sem para isso gastar muito. Cuidou um pouco mais do seu aspecto pessoal, indo a uma cabeleireira, e fazendo uma permanente, com um corte moderno, o que lhe dava um ar mais jovem.
Encontrava-se agora com Paulo todos os dias. Ele aplaudia toda essa renovação e mudança. Almoçavam ou jantavam juntos, consoante a sua mútua disponibilidade. E riam muito, divertiam-se.
Numa certa noite, um sábado, depois de sairem a ver outro filme no cinema, desta vez, romântico, Paulo reacompanhou-a a casa, como já vinha sendo costume. Entrou para tomar algo com Lívia, após o convite que ela própria lhe fez. O clima entre eles estava cada vez mais intimista. A certo momento, Paulo ergueu-se do sofá e abraçou-a, apertando-a contra si. Não foram precisas palavras. Um olhar trocado entre ambos falou por eles. Um beijou os uniu, por alguns momentos.  Depois, Paulo saíu, prometendo voltar no dia seguinte.
Lígia dormiu maravilhosamente, nessa noite, como havia muito tempo que não o conseguia fazer. E no dia seguinte, resolveu também começar a modificar o ambiente da sua casa. Livrou-se de alguns objectos que já não queria. Paulo ajudou-a a tirar de casa trastes e sacos de coisas de que ela pretendia desfazer-se. Na segunda-feira seguinte, comprou tintas para dar novas cores a algum do mobiliário, e meteu mãos à obra, como mulher activa e dinâmica que sempre fora, afinal. Paulo foi dar com ela,  à hora do almoço, com um lenço tapando o cabelo, uma bata velha vestida e uns jeans usados. Ela estava em plena actividade de renovação do ambiente,  de pincéis em riste, várias latas de tinta ao redor, e móveis  pintados de fresco, cujo roçar ele teve de evitar, para não sujar nem estragar o seu fato de trabalho.
Fazendo uma pausa, e vendo que não podia avançar mais com as pinturas naquele momento,  Lívia resolveu parar um pouco com a sua frenética actividade. Queria dar toda a sua atenção a Paulo, que bem a merecia. E queria ela própria respirar e descansar um pouco.
-Vejo que a mudança inclui o que te rodeia! Bravo! Estou a gostar do que vejo, querida!
-Ora ainda bem que gostas, Paulinho! Até porque esta sou eu, a verdadeira Lívia, dinâmica e activa, que sempre conheceste! Estou de regresso!
-Com muitos aplausos da minha parte!
- Mas agora, uma pausazinha vem a calhar, para estar um pouco contigo!
-Claro! Vamos almoçar fora, se não te importas...
- Yuuupiii! Deixa-me só mudar de roupa e escovar o cabelo!
-Ok!
 Momentos depois, saíram ambos para ir, no carro de Paulo, ao outro extremo da cidade de Olhão, dirigindo-se a uma marisqueira. Almoçaram com muito apetite, conversando e rindo. Ele tomou-lhe as mãos por cima da mesa, segurando-as de modo carinhoso.
-Adoro-te, sabias?- disse ele, olhando-a com muita ternura.
-Eu também a ti!- respondeu ela, emocionada, a sorrir.
- Acho que a nossa amizade está a transformar-se em amor, ainda que eu não estivesse à espera disso!
-Concordo contigo!
-E estás de acordo em que as coisas evoluam para uma relação amorosa entre nós?
-Sim! Sinto-me bem contigo, e com a volta que a minha vida está a dar, com a mudança que está a haver na nossa lidação! Embora eu goste muito de ti desde sempre, como amigo, e dê graças a Deus por esta maravilhosa amizade, fico feliz por agora nos tornarmos mais do que isso!
- Acho que vou abdicar do meu celibato por ti! Deixas-me ser o teu novo amor, Lívia?
-Claro que deixo!
- Nunca foste a minha casa, depois que casaste. Queres ir lá comigo, agora? Eu também, ainda moro no mesmo sítio!
-Boa! Assim, não voltamos ainda para a minha, nem respiramos aquele cheiro de tintas, tão intenso! E assim, também, as paredes e os móveis que pintei terão tempo para secar como deve ser, antes que eu prossiga com todas as modificações que pretendo fazer...
-Se quiseres, jantamos juntos também. Tenho a tarde livre, e podemos comprar algo, levar para minha casa e cozinhar juntos!
- Belíssima ideia!
-E se quiseres, ficas comigo esta noite... ou não queres?
Um olhar entre ambos revelou que as vontades eram idênticas. Lívia falou:
- Estou, desde há muito, a precisar de mimos masculinos e de carícias! Já percebi que te estás a candidatar a ser quem mos vai proporcionar... E aceito a proposta!
- Eu também estou desejoso dos teus mimos e carícias, amor! Há tanto tempo que poderíamos ter-nos entregado um ao outro... e não o fizemos... mas acho que ainda estamos a tempo...
- O que não tem remédio remediado está! -Respondeu Lívia animadamente. - Agora, vamos viver o presente! Estou aqui contigo e ambos queremos viver este amor! Meu querido Paulo! Adoro-te e vou dar-te a prova disso a partir de agora!
Pouco depois, saíram da marisqueira de mãos dadas, rumando ao carro de Paulo, onde trocaram beijos apaixonados, antes de que ele o pusesse em marcha. Haviam ambos encontrado a felicidade, um com o outro, e iam vivê-la e desfrutá-la juntos.

FIM

Nely, 
Dezembro de 2017

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