“Conquistar
a sua alegria vale mais do que abandonar-se à sua tristeza.” – André Gide
EM
BUSCA DA FELICIDADE
-Então,
está combinado! Espero por ti, no snack-bar... Até já!
-Até
já! Não demoro!
Lívia
pousou o auscultador do telefone, pegou na mala
que deixara sobre o banco ao lado da mesinha onde o telefone estava,
pondo-a a tiracolo, e apanhando as chaves de casa de cima dessa mesma mesinha,
abriu a porta e saíu para a rua, voltando a fechar a porta à chave.
Acabara
de falar com Paulo, um amigo de longa data, e ia ao seu encontro, nessa tarde
soalheira. Estava farta de ficar só, em casa, enquanto o marido saía sem
ela, sempre que lhe apetecia, e sem a
avisar de onde ia, nem de quando voltava. Essa história de ficar ali, como se
fizesse parte da mobília, tinha de acabar. Estava farta de sofrer! Vinte anos
daquilo...era demasiado! Estava determinada em modificar a sua vida, daquela
tarde em diante.
Maquilhada
ligeiramente, coisa que há muito não fazia, com o cabelo loiro comprido penteado
de forma mais cuidada, e mais sofisticada, parecia mais jovem do que os seus
quarenta anos. Rebuscando no seu guarda-roupa, havia encontrado, momentos
antes, um belo vestido que comprara algum tempo atrás, e que ainda não
tivera ocasião, sequer, de estrear. Era
um belo vestido de meia estação, de tecido estampado, de várias cores, e que
lhe caía ainda como uma luva, conforme acabara de verificar, e, dentro dele,
até se sentia, agora, renovar. Não fazia frio, e isso era bom. Apenas um
casaquinho de malha ligeiro, por cima do vestido novo, bastava. Em passadas
apressadas, ligeiras, foi ao encontro de Paulo. Depressa o viu, junto à montra
do snack-bar, a duas ruas de distância de casa.
Paulo
ergueu-se, para a cumprimentar com um beijo no rosto. Telefonara-lhe momentos
antes, pois sabia que Lívia, nos últimos tempos, quase não saía de casa, e que
passava o tempo quase todo sozinha.
-
Então, querida? Como estás?- Perguntou ele, olhando-a admirativamente.
-
Agora, estou começando a ficar bem! Graças a ter falado contigo!
-
Que pensas fazer da tua vida?- Perguntou Paulo, sempre a sorrir. Era um
homem da mesma idade de Lívia, com alguns
cabelos brancos semeados por entre a cabeleira negra, mas de rosto ainda pouco
marcado. Não se poderia considerar Paulo como um homem belo, mas tão pouco
pareceria feio. Era apenas um homem como qualquer outro, que, apesar da sua
profissão de advogado, não gostava de dar nas vistas, e se vestia e arranjava
de modo casual e discreto, sempre que não se encontrava a trabalhar.
-
Vou pedir o divórcio! Fartei-me, como te disse, há pouco! Ele, esta noite, nem
dormiu em casa, e ainda nem sequer lá voltou... – Disse Lívia decidida.
-
Isso pode ser considerado, em tribunal, como abandono do lar...
-Sei
disso! E é em coisinhas dessas que me vou basear! Preciso da tua ajuda!
-Estou
aqui, amiga! Terás toda a minha ajuda! Podes contar comigo, sempre, e desde já!
Tomas alguma coisa?
-
Um chá de tília! Preciso de acalmar os nervos!
-
Boa escolha! Depois, que me dizes a um cinema? Um filme de comédia recentemente
estreado nos cinemas?
-Aceito!
Preciso de divertir-me!
-Exactamente!
A
conversa deles prosseguiu, com pormenores da traição em que Renato, o marido de
Lívia, a havia magoado, sem que ela lhe fornecesse a razão para isso. Lívia
sempre lhe fora fiel, mas ele tinha, desde o ínicio do casamento, atitudes
egoístas, e não ligava já nada à esposa. Engenheiro agrónomo, sempre e supostamente
muito ocupado, já nem compartilhava os tempos livres com ela. Quase nem se
falavam. Não a convidava sequer para sair a tomar um café.
Lívia
sentira-se, pouco a pouco, desprezada, posta para trás. Sentira-se como uma
sombra de si mesma. Como um objecto mais, entre outros, dentro das paredes da
sua própria casa, que herdara dos pais. Estudara pouco, não tendo chegado a
avançar mais do que os estudos de escola secundária. Não tinha licenciatura
alguma. Sabia fazer muitas coisas, sendo
uma mulher de inteligência média, porém bastante habilidosa. Todavia, era
apenas uma dona de casa, tal como muitas. Renato impusera que ficasse em casa,
com o argumento de que bastava ser ele a trabalhar. Não tinham filhos.
Descobrira, alguns anos antes, problemas físicos que a impediam de engravidar,
e que não tinham possiblidade de tratamento.
A sua vida actual era por isso, naquele momento, e desde algum tempo antes,
vazia. Ela e Paulo eram amigos desde os tempos de escola primária, e Paulo, ao
contrário dela, havia prosseguido os seus estudos... Propôs-lhe ser ele a
tratar do divórcio dela. Lívia aceitou
de imediato.
-Em
primeiro lugar, vamos inventariar os bens que ambos possuem, e ver o que pode
ser-lhe entregue a ele, ou se a atitude dele persistir, perde inclusive o
direito a eles...- disse-lhe Paulo, entrando logo em pormenores práticos para a
resolução rápida desse assunto.
-
Tu, como especialista desses assuntos é que o poderás dizer... – corroborou
Lívia. Estava desejosa de ver esse assunto resolvido, a sua vida mudada.
-
Se ele não tiver voltado, até amanhã de manhã, mudamos a fechadura da porta da
tua casa. Ou, até mesmo, se quiseres, já hoje! E pões-lhe logo a mala com as
roupas à porta. Porque o comportamento dele não merece outra coisa. Não o
deixes entrar mais ali.
-Certo!
E se ele quiser falar?
- Não caias nessa! Há quantos anos casaste com
ele?
-
Há vinte!
- E há quantos é que ele não te liga nenhuma?
-
Já lá vão bem uns sete...
-E
tu deixaste arrastar o assunto tanto tempo? Ele assim julgou que podia
continuar, mulher! Por isso chegou a esse ponto!
-
Realmente, a culpa também é minha, por não me ter imposto mais cedo, e ter tido
medo de represálias...
-
Ele batia-te?
-
Não, mas dizia coisas que magoavam! E sempre fiquei com medo de que o fizesse!
-
Violência psicológica! Que bem!- Resmungou Paulo, revoltado. Para ele, embora
solteiro, uma mulher era tão digna de carinho, atenção e respeito como um
homem. E todo aquele que praticasse algum tipo de violência era digno do seu
desprezo.
A
conversa continuou por algum tempo, até chegar a hora de assistirem ao filme
que haviam combinado ir ver, no cinema ali perto. Uma comédia interessante: “
Um Vagabundo Na Alta Roda” . Riram bastante, enquanto assistiam a peripécias
caricatas, e partilhavam um pacote enorme de pipocas. Lívia sentiu-se como se
voltasse a ter vinte anos, durante esse lapso de tempo. O seu bom humor
regressara. Paulo levou-a de regresso a casa. Verificaram que, realmente,
Renato não havia regressado. Paulo foi então a uma drogaria, onde podia comprar
uma fechadura, para trocar de imediato a da porta da casa de Lívia. Ela,
entretanto, ficou a juntar as roupas e objectos pessoais do marido, metendo
tudo em alguns sacos, e juntando estes ao pé da porta de casa, na entrada.
Paulo regressou, com ferramentas e uma fechadura nova, com a qual, habilmente,
substituiu, em pouco tempo, a anterior.
-Assunto
resolvido, menina! Agora, se não te importas, vamos deixar isso tudo, e vais
jantar comigo, aqui perto!
-
Se o gajo voltar, não irá arrombar a porta?
-
Tens razão! É bem capaz... Mas não vale a pena estar com receio disso! Tens de
ser corajosa e enfrentá-lo! Apanhá-lo de surpresa! Deixas já tudo aqui,
encostado à porta. Só lho entregas, quando e se cá estiveres. Senão, ele vai
ter de esperar que marques com ele data e hora que a ti te convenha, para tal! Ele
assim já nem entra! E vou telefonar já a quem de direito, para arranjar maneira
de não o deixarem entrar, e que nem te chateie!Não vai ter hipótese!
-Como
assim?
-Amanhã,
logo cedo, vais comigo tratar de pedir uma providência cautelar. Ele, assim,
será impedido de voltar sequer a aproximar-se de ti! E terá, por força disso,
de manter alguma distância obrigatória!
-Boa!
És um ás! – respondeu Lívia, a rir.
-Obrigado!
Obrigado! – Respondeu Paulo, fazendo uma vénia cómica, com uma mímica
divertida. Essa era uma faceta que Lívia sempre admirara em Paulo: Ele
conseguia divertir quem com ele estivesse, com o seu jeito brincalhão.
Jantaram
alegremente, como se não tivessem passado tantos anos, desde que eram
companheiros de estudo e brincadeiras. Lívia sentia-se renovar, rejuvenescer,
voltar a ser ela mesma. Paulo elogiou-a:
-Tu,
hoje, já me pareces de novo a Lívia que sempre conheci! Graças a Deus que estás
a recuperar a tua boa disposição, assim como esse teu olhar alegre e esse belo sorriso
que sempre apreciei em ti!
-
Tu és a causa dessa recuperação! Sem a tua amizade, a tua ajuda, ainda estaria
em casa, possivelmente, a morrer de tédio, e a envelhecer moral e espiritualmente...
- Reconheço que te dei
uma mãozinha! Mas a tua vontade de sacudir o marasmo que te aprisionava tem a
maior importância neste caso! Se não tivesses essa vontade, não tivesses tomado
consciência de que a tua situação era reversível, não estaríamos ambos, aqui e
agora, a divertir-nos e a fazer com que pareça que voltámos aos bons velhos tempos!
E devo dizer que o espelho, em casa, deu uma ajuda valente na tua mudança de
visual! Ultimamente, quando te via, tinhas um aspecto triste, monótona,
abatida. Agora, estás linda! Os teus olhos readquiriram brilho, o teu riso é
solto, como antigamente! Bravo! A minha jovem amiga Lívia ressurgiu de dentro
de ti! Fico feliz por te ver assim!
Passou uma semana.
Durante esse lapso de tempo, a vida de Lívia deu uma grande volta: Não só
devolveu ao marido os seus pertences pessoais, como conseguiu livrar-se dele de
vez. Renato sabia que estava em falta, para com ela. Por isso, não complicou a
situação e aceitou levar o que lhe pertencia, de uma vez, abandonar definitivamente
aquela casa. E como também decidira já, por si próprio, ir embora e juntar-se
com a mulher com quem se amantizara já havia alguns anos, não perdeu tempo a
discutir com Lívia. Interiormente, ficou um tanto surpreendido com a nova
atitude dela, e com a sua decisão de introduzir, ela própria, mudanças na sua
vida. Admirou silenciosamente o novo
visual da sua ex-mulher, e pareceu-lhe inclusivamente mais nova. Pensou que era
extraordinária essa mudança, de um dia para o outro. Mas não se importou muito
com isso. Há muito que já não a amava. Embora tivesse vivido com ela,
partilhado a casa dela durante vinte anos, há muito que a sua relação
arrefecera, se degradara, desde que ele havia encontrado Natália, e se havia
apaixonado por ela. Compreendera, nessa altura, que o seu casamento com Lívia
havia sido um erro. E agora, sentia um peso tirado de cima, ao ir embora, levando
tudo o que lhe havia entregado Lívia. Não carecia de bens materiais nenhuns,
uma vez que a casa de Natália se havia, aos poucos, tornado mais e mais o seu
novo e verdadeiro lar. Sentia-se bem lá. E Natália ia dar-lhe em breve um
filho, coisa que Lívia não pudera fazer, infelizmente, e que o atraía ainda
mais para a sua amante, quinze anos mais nova do que ele.
Entretanto, os papéis
para o divórcio amigável haviam sido despachados prestamente, com a ajuda
pronta e activa de Paulo. Seria muito rápido assim. Lívia encontrou a
possibilidade de frequentar um curso, que a ajudaria a desenvolver em breve um
pequeno e rentável negócio pessoal. Tratou também de renovar um pouco o seu
guarda-roupa, de modo criterioso, e moderado. Ela sabia como fazê-lo, sem para
isso gastar muito. Cuidou um pouco mais do seu aspecto pessoal, indo a uma
cabeleireira, e fazendo uma permanente, com um corte moderno, o que lhe dava um
ar mais jovem.
Encontrava-se agora com
Paulo todos os dias. Ele aplaudia toda essa renovação e mudança. Almoçavam ou
jantavam juntos, consoante a sua mútua disponibilidade. E riam muito,
divertiam-se.
Numa certa noite, um
sábado, depois de sairem a ver outro filme no cinema, desta vez, romântico,
Paulo reacompanhou-a a casa, como já vinha sendo costume. Entrou para tomar
algo com Lívia, após o convite que ela própria lhe fez. O clima entre eles
estava cada vez mais intimista. A certo momento, Paulo ergueu-se do sofá e
abraçou-a, apertando-a contra si. Não foram precisas palavras. Um olhar trocado
entre ambos falou por eles. Um beijou os uniu, por alguns momentos. Depois, Paulo saíu, prometendo voltar no dia
seguinte.
Lígia dormiu
maravilhosamente, nessa noite, como havia muito tempo que não o conseguia
fazer. E no dia seguinte, resolveu também começar a modificar o ambiente da sua
casa. Livrou-se de alguns objectos que já não queria. Paulo ajudou-a a tirar de
casa trastes e sacos de coisas de que ela pretendia desfazer-se. Na
segunda-feira seguinte, comprou tintas para dar novas cores a algum do
mobiliário, e meteu mãos à obra, como mulher activa e dinâmica que sempre fora,
afinal. Paulo foi dar com ela, à hora do
almoço, com um lenço tapando o cabelo, uma bata velha vestida e uns jeans
usados. Ela estava em plena actividade de renovação do ambiente, de pincéis em riste, várias latas de tinta ao
redor, e móveis pintados de fresco, cujo
roçar ele teve de evitar, para não sujar nem estragar o seu fato de trabalho.
Fazendo uma pausa, e
vendo que não podia avançar mais com as pinturas naquele momento, Lívia resolveu parar um pouco com a sua
frenética actividade. Queria dar toda a sua atenção a Paulo, que bem a merecia.
E queria ela própria respirar e descansar um pouco.
-Vejo que a mudança
inclui o que te rodeia! Bravo! Estou a gostar do que vejo, querida!
-Ora ainda bem que
gostas, Paulinho! Até porque esta sou eu, a verdadeira Lívia, dinâmica e activa,
que sempre conheceste! Estou de regresso!
-Com muitos aplausos da
minha parte!
- Mas agora, uma
pausazinha vem a calhar, para estar um pouco contigo!
-Claro! Vamos almoçar
fora, se não te importas...
- Yuuupiii! Deixa-me só
mudar de roupa e escovar o cabelo!
-Ok!
Momentos depois, saíram ambos para ir, no
carro de Paulo, ao outro extremo da cidade de Olhão, dirigindo-se a uma
marisqueira. Almoçaram com muito apetite, conversando e rindo. Ele tomou-lhe as
mãos por cima da mesa, segurando-as de modo carinhoso.
-Adoro-te,
sabias?- disse ele, olhando-a com muita ternura.
-Eu
também a ti!- respondeu ela, emocionada, a sorrir.
-
Acho que a nossa amizade está a transformar-se em amor, ainda que eu não
estivesse à espera disso!
-Concordo
contigo!
-E
estás de acordo em que as coisas evoluam para uma relação amorosa entre nós?
-Sim!
Sinto-me bem contigo, e com a volta que a minha vida está a dar, com a mudança
que está a haver na nossa lidação! Embora eu goste muito de ti desde sempre, como
amigo, e dê graças a Deus por esta maravilhosa amizade, fico feliz por agora
nos tornarmos mais do que isso!
-
Acho que vou abdicar do meu celibato por ti! Deixas-me ser o teu novo amor, Lívia?
-Claro
que deixo!
-
Nunca foste a minha casa, depois que casaste. Queres ir lá comigo, agora? Eu
também, ainda moro no mesmo sítio!
-Boa!
Assim, não voltamos ainda para a minha, nem respiramos aquele cheiro de tintas,
tão intenso! E assim, também, as paredes e os móveis que pintei terão tempo
para secar como deve ser, antes que eu prossiga com todas as modificações que
pretendo fazer...
-Se
quiseres, jantamos juntos também. Tenho a tarde livre, e podemos comprar algo,
levar para minha casa e cozinhar juntos!
-
Belíssima ideia!
-E
se quiseres, ficas comigo esta noite... ou não queres?
Um
olhar entre ambos revelou que as vontades eram idênticas. Lívia falou:
-
Estou, desde há muito, a precisar de mimos masculinos e de carícias! Já percebi
que te estás a candidatar a ser quem mos vai proporcionar... E aceito a
proposta!
-
Eu também estou desejoso dos teus mimos e carícias, amor! Há tanto tempo que
poderíamos ter-nos entregado um ao outro... e não o fizemos... mas acho que
ainda estamos a tempo...
-
O que não tem remédio remediado está! -Respondeu Lívia animadamente. - Agora, vamos
viver o presente! Estou aqui contigo e ambos queremos viver este amor! Meu
querido Paulo! Adoro-te e vou dar-te a prova disso a partir de agora!
Pouco
depois, saíram da marisqueira de mãos dadas, rumando ao carro de Paulo, onde
trocaram beijos apaixonados, antes de que ele o pusesse em marcha. Haviam ambos
encontrado a felicidade, um com o outro, e iam vivê-la e desfrutá-la juntos.
FIM
Nely,
Dezembro de 2017
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