O MENDIGO
Há
casos, neste mundo, que são verdadeiras singularidades... Ou, se quiserem,
podemos chamar-lhes prodígios. Bons ou maus? Cabe a cada um, que deles ouve
falar, o ajuizar a esse respeito... Certo, é que eles são contados, porque
certamente, ocorrem... E, para ajuizar, é como diz o nosso povo: “cada cabeça,
sua sentença”!
Por
mim, posso dizer que há realmente histórias que nos são contadas e que nos
deixam a pensar: Serão verídicas? Serão fruto da fantasia de quem no-las
contou? Algumas histórias foram-me, durante a minha vida, contadas, com toda a
sinceridade, pelas pessoas a quem elas sucederam, ou no caso de outras, pelas
pessoas que delas ouviram falar...
Com
este preâmbulo, passo a contar-vos algo que a mim me foi transmitido pela
pessoa a quem isso ocorreu. Conto-o, por encontrar bastante singularidade no
seu conteúdo.
Numa
vilazinha dos arredores da Nazaré, vivia alguém que cedo começou a ter
dificuldades na vida. Essa pessoa, é ainda hoje, considerada por mim como
fazendo parte do rol das minhas verdadeiras amizades. Há muitos anos, porém,
que não a vejo, nem consigo saber nada a seu respeito. Contou-me, ela própria,
a pequena história que me propûs, por minha vez, contar-vos. Protegerei, no
entanto, a sua verdadeira identidade, trocando-lhe o nome, como é lógico.
Dar-lhe-ei o nome de Júlia.
D.
Júlia era uma pessoa de origem humilde. Vivia numa casa térrea, pertencente à
sua família. Ela era jovem, quando lhe
sucedeu aquilo que, muitos anos volvidos, me narrou. Os tempos eram difíceis, naquela
época. Tempos da Segunda Guerra Mundial. Essa guerra afectou de muitas formas
vários países da Europa. O nosso país também sofreu com isso, embora não
participasse na guerra directamente. Contam os mais velhos que passaram muitas
privações, devidas ao racionamento, à escassez de alimentos básicos, e de
várias outras coisas, que deixaram de se encontrar no comércio.
Estando
D. Júlia, certo dia, em sua casa, cuidando de seus afazeres, bateram-lhe à
porta. Quem seria? Ela não costumava receber visitas... Ela foi, no entanto, de
imediato, abrir a porta, saber do que se tratava.
Deparou-se
com um homem ainda jovem, de aspecto pobre, mas limpo. O seu cabelo escuro era
comprido e liso, como se fosse o de um hippie. Mas o desconhecido envergava
roupas masculinas de uso corrente, como todos os homens que se viam naquela
época. Usava barba, era ligeiramente moreno, olhos escuros. Olhou-a nos olhos,
com ar humilde. O seu rosto pareceu um pouco familiar a Júlia. Ele falou, de
modo simples, mas directo, e educadamente:
-
Bom dia, minha senhora! Desculpe-me por incomodá-la. A senhora poderia ter a
bondade de me dar algo de comer?
Júlia,
que o olhava, também de modo franco e sincero, disse-lhe:
Bom
dia! Dê-me só um minuto, se faz favor!
Dizendo
isto, virou-se, e dirigiu-se para dentro de casa. A porta que manteve aberta
dava para um largo compartimento que servia de sala e cozinha em simultâneo.
Havia ali uma mesa e algumas cadeiras, provando ser esta um local de refeições.
Júlia, de modo rápido, apanhou de sobre a mesa as duas únicas coisas que de que
dispunha como recursos para esse dia: um bocado de pão e uma moeda de baixo
valor. Nada mais tinha disponível. Com
essas duas coisas, dirigiu-se de novo ao
pedinte que ali ficara à porta.
-
Só tenho este bocado de pão, e esta moeda. Qual destas duas coisas prefere o
senhor que lhe dê?
-Minha
senhora- respondeu o desconhecido, continuando a olhá-la directamente nos
olhos, e com aquele seu jeito humilde de falar - quem pede não escolhe.
Júlia
deu-lhe então a moeda. Ele agradeceu. Virou então costas e foi embora.
Júlia
fechou a porta, regressando ao interior de sua casa. Ao pousar sobre a mesa o
pedaço de pão, algo lhe chamou a atenção: sobre a mesa havia outra moeda, no
mesmo lugar, precisamente, de onde ela apanhara a primeira, que acabara de entregar
à mão do mendigo, como esmola.
Estando
ela sozinha em casa, ninguém poderia ter posto, entretanto, nova moeda sobre a
mesa. E ninguém havia presenciado aquela ocorrência... Júlia não queria
acreditar naquilo que via... Como poderia estar ali aquela moeda, agora, se ela
tinha a certeza de não ter mais nenhuma, e acabara de dar a única que possuía
àquele mendigo?
Correndo,
voltou à porta e abriu-a. Olhou lá para fora. Não havia ninguém na rua... Correu
até à esquina. Ninguém ali, e nem ao longe, sequer... Olhou para todos os lados. A rua, porém,
estava completamente deserta!
Júlia
voltou segunda vez para dentro, fechando de novo a porta. A moeda continuava
ali, sobre a mesa. Não era uma alucinação! Boquiaberta, apanhou a moeda, virou-a e
revirou-a na mão. Era real! Voltou, pensativa, aos afazeres que interrompera...
Não deixava, porém, de pensar no sucedido... Nunca lhe havia aconcedido algo
assim antes! E outra coisa: quem era aquele homem? Pobre de aspecto, mas tão
educado, e com um falar tão humilde quanto gentil... Tão sincero naquele olhar
directo, mas ao mesmo tempo, penetrante... O seu rosto parecera-lhe, além
disso, um tanto familiar... Mas como? Se
nunca estivera com ele antes, nem o vira ali, pela vila? Tê-lo-ia visto na rua,
ou cruzado com ele alguma vez? Não se lembrava de tal coisa! E porque voltara a
moeda a aparecer sobre a mesa? Mistério!
Depois de muito matutar sobre
isso, dirigiu-se ao seu quarto. No corredor que lhe dava acesso, havia um
quadro, numa das paredes, representando Jesus. Era um daqueles quadros muito
populares entre o povo português daquela época. Júlia olhou para o quadro.
Jesus parecia estar a olhar específica e directamente para ela, naquele
momento. Então, Júlia compenetrou-se do seguinte: o olhar d’Ele, retratado
naquele quadro, era exactamente o mesmo, assim como a expressão de todo o seu
rosto, ao que ela captara no rosto e no olhar do mendigo desconhecido que ali
estivera à sua porta, momentos antes! Até a barba e o cabelo comprido, eram iguais,
do mesmo tamanho, da mesma côr! Espantada, olhava sem cessar o quadro, e julgou
compreender então: Jesus visitara-a, aparecera-lhe dessa forma singular! Ele pusera-à prova! E
devolvera-lhe, de modo milagroso, a moeda que ela lhe entregara! Essa só havia servido
para testá-la! Pois, para que precisaria
Jesus do seu tão pouco e único dinheiro? Se Ele era Deus! Júlia acabara, isso
sim, de assistir a um milagre!
Ao
longo da sua vida, sucederam a Júlia
outras ocorrências de teor extraordinário, dentro do que se podem também
considerar prodígios, e dos quais ela me contou, noutras ocasiões , algumas,
semelhantes a esta que aqui vos deixo. Inclusive, ela veio a descobrir, algum
tempo depois, que era “médium”. E então, ainda mais se convenceu de que Deus
permitia que lhe sucedessem, ou que presenciasse, factos não comuns, para com eles
lhe transmitir algo, a cada vez.
O certo é que a minha amiga, a “D. Júlia”, nunca
mais esqueceu aquele encontro, com aquele pedinte tão singular, nem a sua frase:
“Quem pede não escolhe!”...
Grande
verdade!
E
ela ficou doravante convencida de que esse pedinte era, de facto, o próprio Senhor Jesus Cristo!
FIM
Nely, 1 de Fevereiro de 2018
( Do meu livro de Contos Portugueses "Transcendências")
Sem comentários:
Enviar um comentário