quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Conto : A Intercessora

 Conto nº 9

A  INTERCESSORA

(Sequência do conto “Alma à Deriva”)



Sentada à mesa da sua salinha de estar, Eunice, de mãos postas diante de si, de olhos fechados, estava orando a Deus. Concentrada, recolhida, aproveitava esses momentos do dia em que ninguém lhe batia à porta. Todos sabiam, na aldeia, que, depois do almoço, Eunice gostava de estar a sós com Deus, e que esses seus momentos eram para ela sagrados. Noutras horas do dia, muitas vezes lhe batiam à porta. Umas vezes para lhe pedir ajuda ou conselhos. Outras, para ir ajudá-la em algumas coisas de que ela necessitasse. Também lhe traziam peixe fresco, já amanhado, da pesca diária, ou algum cozinhado que houvessem acabado de confeccionar. Todos na aldeia eram seus amigos e a tratavam  com carinho. O respeito pela sua idade avançada também lhes incutia ajudá-la em tudo quanto ela necessitasse. Os mais jovens  tributavam-lhe uma admiração e reverência profundas.
Nessa hora de recolhimento, Eunice estava derramando a sua alma em preces. Falava a Jesus de si mesma.  Sabia que Deus lhe proporcionara uma vida longa, trabalhosa, mas dedicada. Cumprira o melhor que soubera com tudo o que lhe surgira para fazer, ao longo da sua extensa vida, e seguia cumprindo. Sabia que algum dia teria de partir, e que a sua hora final neste mundo soaria. Não a afligia o facto por si mesma. Mas sabia que ia deixar vago um lugar que mais ninguém, naquela terrinha humilde, teria capacidade para ocupar. E afligia-a ter de deixar, a partir daí, sem auxílio, sem conselho, os seus amigos aldeões.
Marinela e Túlia eram visitas diárias, habituais.1 Marinella ajudava nos afazeres da casa. Túlia, a sua amiga cigana, viúva, trazia-lhe as compras necessárias.2 Ambas eram mulheres entre os quarenta e os cinquenta anos. Eunice já ia nos seus oitenta e muitos... Lúcida, ainda que já com menos energia, Eunice saía, de forma limitada, embora diariamente. Andava um pouco,  pela estrada principal da aldeia. Descia devagar os degraus de pedra que levavam à praia. Havia, perto da sua casa, um miradouro onde ela gostava de sentar-se, algumas vezes, junto ao farol,  e olhar para o mar.
Às vezes, via Marinela descer por ali, passear, dar voltas sobre si própria, cantando e fazendo gestos de palco. Marinela havia sofrido muito, mas estava quase completamente restabelecida. Eunice ajudara-a o quanto havia podido. E seguia orando por ela. Marinela ainda gostava, também, de vir a sua casa.  Compreendiam-se ambas muito bem. Túlia também se dava muito com ambas. Entre Eunice e Túlia, crentes convictas em Deus, haviam ajudado Marinela a encontrar o seu verdadeiro caminho.3 Mas antes disso, muito antes, Eunice  tivera muitas  almas pelas quais interceder, com oração e súplica, diante de Deus. Quantas almas aflitas  não encaminhara Eunice? Por quantas não implorara a Misericórdia Divina? Não desistia de ninguém, nem negava assistência a quem quer que fosse. E quando o mar se tornava  em furiosa tempestade,  quanto intercedera ela pelos desafortunados pescadores, que arriscavam a vida, para ir para a sua faina marítima?!
Eunice só aceitava pequenos e modestos presentes, nunca pagamentos monetários. Ficava feliz tão somente de vê-los voltar às suas casas, sãos e salvos. Pois regozijava-se em saber que as suas preces eram atendidas.
Quantas noites se pusera ela de joelhos, intercedendo por qualquer daqueles que sabia estarem em aflição?!
Houvera o caso de Olinda,  uma jovem mulher da aldeia, que quase morrera de parto, havia poucos anos. E que as súplicas e os esforços, a nível profissional, de Eunice, haviam contribuído para que se salvasse. Houvera também dois pescadores desaparecidos, que todos julgavam já mortos, afogados, e que, por milagre, haviam regressado a casa, após terem ficado retidos num ilhéu das proximidades, até a maré baixar, e serem encontrados, passadas algumas horas, quase a morrer de frio, mas ainda assim, vivos!
E tantos outros casos!... Crianças em perigo de morte, com doenças para as quais ainda não havia vacinas... Sempre de joelhos, de mãos postas, Eunice, fechada em sua casinha, no promontório vizinho da praia, perto do farol, orava:
- Senhor meu Deus, tem Misericórdia! Não te peço nada para mim! Sei que me cuidas! Mas te peço por esta pessoa.... (E citava a criança, o homem ou a mulher, e até mesmo a família em aflição)... O certo, é que Deus ouvia-a! E lhe respondia com a Misericórdia, a Justiça, o Amor que ela esperava d’Ele.
Todos, na aldeia, a conheciam como a “Grande Irmã”, uma espécie de “Madre Teresa de Calcutá” local.4
A alta e  esbelta figura de Eunice, como por milagre, se mantinha direita, apesar dos anos. A sua farta e comprida cabeleira ruiva, sempre penteada do mesmo modo, com um carrapito, que em espanhol se chama “moño”, e que formava como que um caracol enrolado e preso na nuca, fora ficando totalmente branca, com o passar dos anos. A sua pele fina e muito branca fora ficando marcada de sulcos e finas rugas. Só os olhos azuis claros haviam conservado a sua luz alegre e viva. Eunice era uma pessoa viva e alegre. Tinha um espírito jovem.
Mas, afinal, quem era esta mulher tão singular? Eunice era uma pessoa que havia feito um voto de celibato perante Deus. Não professara como freira. Não concordava, pessoalmente, com a existência de vida conventual. Para ela, não era necessário ser freira para dedicar-se aos outros. Em nova, havia sido enfermeira. Pronunciara, de todo o coração, o juramento de Florence Nightingale,  grande pioneira das enfermeiras, ao começar a sua carreira profissional5. E mantivera-se fiel a esse juramento. Havia, assim, sido enfermeira, desde a sua juventude, até à sua reforma. Cumprira tudo isso, muito séria e dedicadamente, como um apostolado. Depois de reformar-se, retirara-se para aquela aldeia, de onde a sua família era natural. Os seus parcos recursos financeiros, devido à sua vida simples  e pacata, bastavam-lhe para viver.  Tinha apenas algo de diferente  em relação a qualquer mulher daquele lugar: sendo um tanto excêntrica, usava vestidos de sevilhana, garridos, em tons alegres.
- Porque hei-de usar roupas escuras, se eu não gosto de cores escuras? – Perguntava a quem lhe falasse em tal assunto. – A vida deve ser alegre! Eu gosto de cores alegres e vivas, como tudo o que existe na Natureza!
-Ai... e tal... a Senhora já não tem idade para essas roupas...- aventurara-se uma das aldeãs a dizer-lhe, quando ela, com sessenta anos, ainda aparecia vestida de azul claro e branco. A pessoa em questão era mais nova do que Eunice, e vestia-se de cores pardacentas e trajes antiquados, sem graça nenhuma.
Alegremente, Eunice insurgira-se contra tamanho preconceito da sua interlocutora:
- Não tenho idade? Que conversa vem a ser essa? Quantos anos tem o Céu? E o mar? E não continuam  a ser tão azuis como sempre foram?  E as flores? E as ervas do campo? Acaso não continuam a nascer nas mesmas cores? Eu sou como elas: uma criação de Deus! Não há idades para uso desta ou daquela côr!
 E com este discurso lógico e simplista, calara a outra, a qual nunca mais lhe fizera tal conversa. Ao longo dos anos, todos os habitantes da aldeia se haviam acostumado a vê-la com os seus vestidos compridos, de cores alegres, e os seus xailes  a combinar. E não estranhavam: Eunice era assim mesmo!  E não eram vestidos velhos, os que ela usava: Eunice sabia costurar. Herdara uma antiga máquina de costura de sua mãe. E comprava tecidos belos, quando, de vez em quando, levada de boleia no carro de alguma daquelas famílias da aldeia, se deslocava à cidade, a fazer compras. Confeccionava ela própria as suas belas roupas, que sempre estavam ajustadas ao seu corpo esbelto.
Havia frequentemente um sorriso, naquele rosto marcado pelo tempo, mas belo. Os seus vivos olhos azuis sorriam tanto como os seus lábios finos. Sorria aos jovens, às crianças, aos mais velhos... Todos gostavam de Eunice naquele lugarejo.  Todos a veneravam e acatavam as suas opiniões,  como sendo as de uma pessoa sábia, experiente.  Os jovens, quando regressavam da escola, ao fim de cada tarde, não perdiam tempo a expôr dúvidas a seus pais: Eunice era a pessoa certa para os elucidar nalguma dúvida que tivessem.  Pois sabiam  que Eunice estudara, na sua juventude. Possuía conhecimentos de que mais ninguém, na aldeia, era detentor. E respondia sempre com muito agrado a qualquer pergunta que lhe fosse feita. Eunice não tinha falsos pudores, e ensinava também as raparigas da aldeia, no tocante a tudo o que dissesse respeito a assuntos íntimos femininos. Tornara-se a confidente ideal de algumas das jovens que, com propensões românticas próprias da adolescência, lhe submetiam os seus primeiros poemas... Falavam-lhe dos seus diários íntimos, iniciados havia pouco tempo, dos seus namoros, das suas ansiedades de jovens... Eunice dava conselhos a todas as que lhos pedissem... E gratificava-as sempre com um sorriso gentil. Não julgava ninguém, pois afirmava sempre que, para julgar, está Deus. E que a missão dela era simplesmente ajudar, na medida das suas capacidades.
Em toda a aldeia, não havia uma adolescente ou jovem mais velha que não visitasse Eunice, levando-lhe frequentemente um ramo de flores campestres (coisa que Eunice adorava), e que não se sentasse  à sua mesa, diante de uma boa chávena de chá, acompanhada de bolinhos que elas próprias confeccionavam, ou compravam, e levavam-lhe de bom coração. Eunice aceitava isso muito naturalmente. Essas sessões de tomada de chá, entre mulheres, eram muito bem vindas de sua parte, e incentivava-as a voltar a sua casa, sempre que o desejassem ou necessitassem.
As adultas da aldeia, mulheres sofridas, pediam-lhe, muita vez, mezinhas antigas, caseiras, ou algum outro remédio para as suas maleitas; uma gravidez inicialmente indesejada passava a ser algo digno de festa. A alegria e o espírito positivo de Eunice derrubava o mau humor, a tristeza, os receios... Ervas aromáticas diversas, que ela lhes fornecia, fervidas em chá,  davam remédio a dores de barriga, períodos atrasados, e outras coisas do mesmo estilo. Eunice ralhava-lhes bondosamente, incutindo-lhes mais fé! Nunca incentivara nenhuma delas a abortar, bem pelo contrário! Ela celebrava alegremente a vida, embora nunca tivesse sido mãe. Falava-lhes da Palavra de Deus, e demonstrava-lhes, com Ela, a Vontade Divina, em relação  a esses assuntos. Havia sabedoria em suas palavras.
Até os homens da aldeia sabiam que podiam confiar em Eunice, sabendo também, desde havia muito tempo, que dali só seriam ouvidos conselhos sábios e de pura e genuína amizade. Por isso, Eunice era amada e respeitada por todos eles, naquele lugar onde vivia.
Voltemos, no entanto,  a essa tarde em que Eunice, a sós com Deus, derramava a sua alma perante Ele.
Depois de orar algum tempo, Eunice, de posse de algumas respostas  da parte de Deus, decidiu pedir uma reunião com todos os moradores da aldeia. Vendo que Eunice avisara de que se tratava de algo muito sério, acorreram todos prontamente, tanto jovens como gente mais velha.
-Meus queridos amigos – diz Eunice, diante de todos eles ali reunidos – Vou ser directa. Todos vós sabeis que a minha idade já vai bastante avançada. Entendo, pois, que devo tomar certas disposições antes de partir deste mundo. Há coisas que, certamente, deverão constar de um testamento. Não tenho já nenhuma parentela, como sabeis, tendo sido filha única de meus pais.  Mas há coisas que preciso deixar escritas perante um notário...
-Amiga Eunice, se quiser, chamamos cá o notário, e ele vem cá!- Opina um dos pescadores, de nome Mário.
- Podem também levar-me lá ao cartório, nalgum dos vossos carrinhos, que eu pago a despesa, e ainda será melhor! – Replica Eunice.
-Claro, claro! E ele há-de lhe prestar todo o esclarecimento e toda a informação que fôr preciso!- responde Zé, outro dos pescadores mais velhos.
- Quero tomar disposições, enquanto ainda estou viva, quanto a esta casa. Se possível, para que fique como um lugar de acolhimento e socorro de quem o necessite. Ou até, e também, para reuniões, para todos vocês, quando houver coisas a decidir entre todos!
- Belíssima ideia!- Opina Túlia. – E podemos decidir, também, assim, quem cuidará desta sua casinha!
- Isso, vocês todas, com a concordância dos homens da aldeia, podereis decidi-lo em conjunto.- Responde Eunice. -Peço-vos, portanto, que continueis a vir aqui, e podereis cá orar; podereis aqui acolher quem seja necessário acolher!
Durante alguma conversa mais,  Eunice  indagou às mais jovens da aldeia sobre quais delas estariam de acordo em herdar os seus vestidos sevilhanos, os seus xailes e colares, que ela desejava que não fossem levados dali, nem jogados fora. Todas concordaram em receber pelo menos um cada uma. Mesmo que não os vestissem, ou usassem, guardá-los-iam com todo o carinho nos seus baús, como recordação.
Havia também um belo espólio, de livros, uns mais antigos, outros mais recentes,  e de discos  de música clássica. Ficaria ali tudo isso, à disposição de todos, para ser utilizado pela comunidade, sempre que quisessem ou disso necessitassem. Podiam ficar ali, a ler, o tempo que fosse preciso, ou a escutar a música, quando assim o determinassem.
Dias depois, Eunice preparou, com ajuda do notário da cidade  mais cercana, o seu testamento.
A sua casinha, quando ela partisse, passaria a pertencer à comunidade de pescadores, a quem ela a legava, assim como todo o seu conteúdo. Com a condição de que mantivessem a casinha cuidada e limpa, e formassem quanto antes uma associação, também ela reconhecida no notário.  A essa próxima associação, Eunice legava fundos monetários, provenientes das suas economias, após retirar apenas o necessário para o seu funeral, para quando esse ocorresse. E deviam ficar dois ou três dos pescadores como responsáveis pelo cumprimento dessa cláusula. Eunice deixava como última vontade sua que o seu funeral teria de ser algo humilde e simples, querendo que os seus restos mortais fossem para o chão. Nada de luxos.
- Flores, por favor, prometam-me que as deixam aqui, em jarras! Para que esta casinha continue alegre, como sempre! Façam-no em minha memória! Não precisa florir campas no cemitério! Sabem que detesto isso!
-Prometido, querida Irmã! Foram várias vozes unânimes a responder-lhe  em coro.
- E venham tomar chá aqui, entre vários de vocês, sempre que assim o entendam!- Pediu ela.
Tudo foi tratado e disposto conforme Eunice desejava...
 Até que um dia, alguns meses depois, Eunice foi espiritualmente avisada de que estava chegando a hora. Já que queria despedir-se dos seus amigos, Deus mandou  que os chamasse. Eunice assim fez.  Quis sair para o terraço, rodeada por todos eles, velhos e novos. Estava bem vestida e composta. Era aquela a roupa com que deveria ficar. Estava pronta.
Sentada no terraço, rodeada por todos eles, cuja maioria tinha a expressão séria ou até lágrimas a assomar nos olhos, ela sorria-lhes, animava-os: Não os queria ver tristes naquela despedida! Viu então dois anjos de vestes resplandecentes, saindo de uma viatura que parou ao lado da sua porta.  Tinha sentido a sua proximidade ainda antes de vê-los. Formulou uma prece em voz baixa. Marinela apercebeu-se da situação também, tal como Túlia.
- Meus queridos: chegou a hora! Já sabem o que têm a fazer quando eu deixar o corpo! Não chorem por mim! Fui muito feliz, tive uma vida longa! Obrigada a todos pelo vosso carinho, respeito e amizade! Mas está na hora de partir! Adeus, meus queridos! Pensem em mim, e sigam o meu exemplo! Continuem sendo unidos! Eu vou continuar a ser feliz, lá com Deus! Adeus! Adeus!
Marinela, então viu: os anjos ampararam por instantes Eunice, cuja alma deixou o corpo, com um leve estremecimento deste. Havia agora duas Eunices: uma sorridente, de pé, apoiada nos anjos que a rodeavam, e  a qual lhes acenava, sorridente, indo embora devagarinho, dali para a viatura celestial, e coberta de uma linda túnica alva e resplandecente. Toda ela brilhava. A outra Eunice, corpo já sem vida, com o seu vestido de sevilhana garrido, e tornando-se rapidamente duro, recostada na cadeira, com a cabeça pendida para um lado.
Marinela sorriu tristemente, tal como Túlia. A sua grande amiga e irmã Eunice deixara-os!
Eunice partiu assim, para a Eternidade, rumo ao seu Eterno Lar, ao encontro de Jesus, que lá a esperava  de braços abertos! Ela cumprira integralmente o seu longo apostolado. Agora, estava na hora de receber a sua recompensa, a sua coroa de Glória!
A comunidade de pescadores e aldeões subsiste ainda. Tudo tem sido feito como Eunice havia disposto. E a sua linda memória continua viva, naquela aldeia, e naquela casinha do promontório junto ao farol.

FIM


Nely, 16 de Agosto 2017


Anotações :
1)    e 2) :Ambas as personagens, assim como a personagem Eunice, fazem parte do conto escrito e apresentado anteriormente, intitulado “Alma à deriva”.
3): Conforme descrito no conto “Alma à Deriva”, em que Marinela é a personagem principal.
4) Pormenor referido no conto “Alma à Deriva”.
5) Florence Nightingale, célebre pioneira originária de famílias ricas inglesas, criou e instituiu esse juramento, que era obrigatório e ritual no início de carreira de qualquer enfermeira antigamente, tal como os médicos proferiam o juramento de Hipócrates.
           ver : https://pt.wikipedia.org/wiki/Florence_Nightingale
Advertência: Tal como o conto precedente, esta história é ficção integral, na sua totalidade.

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